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Aborto e desinformação: chega de fake news sobre o Projeto 1904
| Foto: Christian Bowen/Unsplash

Ainda há muita desinformação em relação ao aborto no Brasil. É preciso lembrar que a vida é um bem juridicamente protegido, independentemente da sua fase de desenvolvimento. No Brasil, a lei que proíbe o aborto é o Código Penal. Do ponto de vista médico, a vida tem início com a concepção, quando o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozoide masculino. A proteção pelo direito penal, entretanto, se dá a partir da nidação, quando ocorre a implantação do óvulo fecundado no útero. É por isso que só existe crime de aborto se houver gravidez intrauterina. A partir do início do parto, a proteção penal da vida ocorre pela criminalização do homicídio ou do infanticídio, a depender do caso.

O crime de aborto pode ser cometido pela própria gestante ou por terceiros. Quando a gestante provoca aborto em si mesma ou consente que um terceiro o provoque, tem-se o crime de autoaborto, cuja pena atualmente prevista é de 1 a 3 anos de detenção. Nos casos em que o aborto é provocado por terceiro, é preciso verificar se houve ou não consentimento da gestante, pois as penas serão diferentes. Se não houver o consentimento da gestante, a pena é de 3 a 10 anos de reclusão. Mas se houver, a pena é de 1 a 4 anos de reclusão. Essas penas serão aumentadas em 1/3, caso haja lesão grave, ou duplicadas, se ocorrer a morte da gestante.

O PL 1904/2024 é importante para preservar as duas vidas e manter a mentalidade de valorização da vida no direito penal, uma vez que dá origem e suporte aos demais bens jurídicos

O Código Penal afasta a punição pelo crime de aborto em apenas duas hipóteses: para salvar a vida da mãe e em caso de estupro. A primeira hipótese trata do aborto necessário, em que há conflito entre dois bens jurídicos: a vida da gestante e a vida do feto. O Código Penal protege a vida da gestante. Na segunda hipótese, não se pune o que se denomina aborto humanitário, quando a gravidez resulta de estupro e há o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 

Perceba que o Código Penal não fala de anencefalia e a doutrina penal, por sua vez, não exige que o feto seja viável para a caracterização do crime de aborto. Contudo, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, do Código Penal (ADPF 54). Portanto, segundo o STF, não haverá crime de aborto nos casos de bebê anencéfalo, independentemente da sua idade gestacional, sob o argumento de que ele não terá chance de viver muitas horas fora do útero materno.

Importante destacar que o Código Penal não estabeleceu limite temporal para a realização do aborto para salvar a vida da gestante e nem para o caso de aborto quando a gravidez resulta de estupro. A falta de previsão do marco temporal para a primeira hipótese é óbvia, pois a finalidade é salvar a vida da mãe. Para a falta de previsão de marco temporal nos casos de aborto em que a gravidez resulta de estupro, é preciso compreender as circunstâncias da época em que o Código Penal foi elaborado, quando não havia anestesia amplamente disponível e os recursos médicos eram escassos.

Nessa época, uma mulher submetida à cesárea tinha de 10 a 20% de chance de morrer em decorrência do parto, da cirurgia. Praticamente uma em cada cinco mulheres morria na cesárea. Nem uma cesárea se fazia, a não ser que houvesse risco de morte para mãe. Portanto, em 1940, quando entrou em vigor o Código Penal, o aborto em idade gestacional avançada era impensável, pois o risco de morte para gestante era alto.  

Quase seis décadas depois, a partir de novembro de 1998, Normas Técnicas do Ministério da Saúde começaram a prever que, nos casos de gravidez decorrente de estupro, o aborto somente deveria ser realizado até a vigésima semana. Contudo, insatisfeita, a militância abortista continuou a pressionar a agenda política, com o objetivo de que o crime de aborto seja transformado em um direito.  

Recentemente, em 28 de fevereiro, o Ministério da Saúde publicou nota técnica afirmando que “se o legislador brasileiro ao permitir o aborto, nas hipóteses descritas no artigo 128 não impôs qualquer limite temporal para a sua realização, não cabe aos serviços de saúde limitar a interpretação desse direito”. Apenas um dia depois, a nota foi suspensa pelo governo.

Nesse ponto, vale uma reflexão. O que o Código Penal faz é afastar o crime de aborto, quando o aborto objetiva salvar a vida da gestante, já que se trata de uma causa de excludente de antijuridicidade. No caso de estupro, o fato é típico e jurídico, mas não culpável. Portanto, em ambos os casos, não há que se falar em um suposto direito ao aborto.  

Como resposta à publicação da nota, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 2378/2024 para vedar ao médico a realização da assistolia fetal, nos casos de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do bebê com idade de mais de 22 semanas. Logo em seguida, o PSOL provocou o Supremo Tribunal Federal para que essa resolução fosse afastada do ordenamento jurídico, ocasião em que o Ministro Alexandre de Moraes concedeu a liminar.

A resposta veio, então, do Congresso Nacional, com o Projeto de Lei 1904, de 2024, que leva em consideração as circunstâncias históricas referentes à proteção da vida, e prevê que nos casos de autoaborto e de aborto provocado por terceiros com ou sem consentimento da gestante, havendo gravidez resultante de estupro, quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples, de 6 a 20 anos de reclusão.

Com a tramitação do referido projeto de lei, muita notícia equivocada circulou nos meios de comunicação. Uma delas, por exemplo, afirma que o projeto “visa restringir todas as possibilidades de aborto no Brasil. A matéria pretende equiparar qualquer aborto realizado no País, após 22 semanas de gestação, ao crime de homicídio”.

Não está sendo retirado o direito da mulher de interromper sua gestação, mas também não é dado à mulher o direito de matar e de torturar

Essa é, sem dúvida, uma notícia completamente equivocada. Como visto acima, a lei prevê que em dois casos não haverá crime de aborto: para salvar a vida da gestante e em caso de gravidez decorrente de estupro. Além disso, o STF afasta o crime de aborto em caso de anencefalia. Em somente um desses três casos (gravidez decorrente de estupro) o projeto impõe uma limitação temporal. Ao contrário da notícia, portanto, o projeto não visa restringir todas as possibilidades de aborto e nem equiparar qualquer aborto quando o bebê tiver mais de 22 semanas ao crime de homicídio. Trata-se, portanto, de um “fake news”. 

A outra desinformação é relativa à suposta prisão de crianças e adolescentes que vierem a abortar. Crianças e adolescentes não estão sujeitos à prisão. Apenas podem ser aplicadas medidas de proteção às crianças e medidas socioeducativas aos adolescentes, sendo a mais grave e excepcional a internação. Também foi muito repetido que se a mulher for vítima de estupro e venha a abortar após 22 semanas de gestação teria uma pena maior do que a do estuprador. Isso também não é verdade.

Primeiro porque uma mulher vítima de estupro, provavelmente, tomará a pílula do dia seguinte e as demais medidas necessárias. Segundo porque, no caso de haver uma criança ou adolescente que não reconhece uma gestação, um crime de cárcere privado, a comum burocracia estatal, ou uma dificuldade na decisão de manter a gestação ou não em razão do sofrimento, a mulher vítima de estupro que venha a abortar o bebê com mais de 22 semanas poderá ser beneficiada com o instituto do perdão judicial, segundo o qual o juiz poderá diminuir a pena ou até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração a atingirem de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. Terceiro porque a pena no Brasil costuma ficar no mínimo legal e, embora a pena máxima do homicídio seja de 20 anos e a do estupro de 10 anos, as penas mínimas desses crimes são iguais, 6 anos. Além disso, a pena ainda pode ficar abaixo do mínimo legal, a depender de determinadas circunstâncias previstas no Código Penal.    

Além disso, vale lembrar que obrigatoriamente a gestante, quando o bebê tiver mais de 22 semanas, passará por um parto. Não há motivo para matar o bebê para fazer o parto. Não está sendo retirado o direito da mulher de interromper sua gestação, mas também não é dado à mulher o direito de matar e de torturar. A gestante interromperá sua gestação, passará pelo mesmo processo do parto, e preservará a vida do filho. Assim como ela não é obrigada a continuar a gestação, não é obrigada a permanecer com o filho, uma vez que tem o direito de realizar a entrega voluntária para adoção.     

O PL 1904/2024 é, portanto, importante para preservar as duas vidas e manter a mentalidade de valorização da vida no direito penal, uma vez que dá origem e suporte aos demais bens jurídicos. A incriminação do aborto pelo Código Penal busca justamente proteger a vida. Por último, não nos esqueçamos que outras políticas públicas voltadas para a prevenção e repressão de crimes, bem como para o acolhimento da gestante e do bebê, são igualmente relevantes.

Bianca Cobucci Rosière é defensora pública e mestre em Políticas Públicas.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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