A dignidade do embrião está novamente no centro de opiniões conflitantes com o Estatuto do Nascituro. De um lado temos os defensores da liberdade de escolha da mulher; de outro, os religiosos, contrários à interrupção voluntária da gravidez. Poderia ser apenas o debate entre a fé e a autonomia livre de premissas metafísicas. Mas não é.
Na Idade Média, dentro da filosofia escolástica, a "sindérese" considerava existir por parte dos seres humanos uma aptidão natural para assimilar o bem. Contudo, para Platão, este aprendizado se daria através da "anamnese". Esta palavra, hoje, é empregada apenas com o sentido médico, para as informações dadas pelo paciente que permitem chegar a um diagnóstico. Platão acreditava que o método socrático de ensinar por meio de perguntas faria os estudantes se recordarem daquilo que eles já sabiam. Ou seja, a moralidade e a tendência ao bem seriam inatos nos seres humanos. A anamnese, então, seria o método para trazer isso à memória.
A ética, que estuda os atos humanos à luz da razão, considera esses atos na sua totalidade: nas intenções, nos valores, nas consequências e no ambiente sociocultural do sujeito. Dentro desse modelo, não seria lícito realizar um mal, mesmo que por meio dele se possa atingir um bem.
O relativismo moral vigente hoje, contudo, atribui à consciência dos seres humanos uma virtude sobre-humana: a da infalibilidade. Quando o único fator determinante para que alguma atitude humana possa ser considerada como boa for o julgamento individual, a moral por si só deixa de existir. Pois nessa situação aqueles que têm mais poder impõem sua posição aos outros mais vulneráveis. E a chamada "liberdade da consciência" poderia justificar inclusive crimes cometidos por regimes totalitários.
A autonomia, por outro lado, é, sim, um valor inestimável, conquistado de maneira árdua e ao custo de muitas vidas. Entretanto, ela, per se, não é absoluta e precisa de um ponto de referência fora dela. Sobretudo porque hoje, segundo Zygmunt Bauman, vivemos novos problemas, desconhecidos nas gerações passadas, assim como também novas formas que tomaram os velhos problemas. E, para complicar ainda mais, estamos na chamada "modernidade líquida", onde as pessoas não são estimuladas a se lançar na busca dos ideais morais ou mesmo de cultivá-los. Tempos, segundo ele, de individualismo e de busca da boa vida, limitados apenas pela exigência de tolerância. Contudo, a tolerância, quando casada com o individualismo, pode gerar a indiferença.
Portanto, o embrião humano, exatamente por ser humano, é geneticamente um ser humano em fase inicial de desenvolvimento. E a ética, mesmo que fora de moda em tempos líquidos, tem seu fundamento básico no respeito ao próximo. É a máxima de não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que fosse feito para nós mesmos. A relativização do embrião passa, mesmo que não seja esse o desejo daqueles que defendem o aborto, pela relativização do próprio ser humano, onde uns podem valer mais que outros. E a indiferença com alguns pode gerar uma sociedade menos comprometida com nós mesmos como seres humanos.
E o médico, como fica? A ética médica deverá ser mudada e adaptada aos novos tempos? Não, porque o aborto não é ato médico. Basta exercitarmos a "anamnese" de Platão para recordarmos que nosso compromisso moral e histórico, dentro da tradição hipocrática, é com a vida. Sempre foi assim. Se a sociedade brasileira, através dos seus representantes, decidir legalizar o aborto, ela deveria buscar alternativas outras, com outros profissionais treinados ou criados para isso, mas não colocar nos ombros do médico essa missão de interromper a vida.
Cícero Urban, médico oncologista e mastologista, é professor titular de Bioética e Metodologia Científica no curso de Medicina e na pós-graduação da Universidade Positivo.
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