Às vezes imagino se, em relação ao noticiário, estou ficando parecida com a protagonista de A Princesa Prometida, que desenvolve imunidade a um veneno, o pó de iocaína, simplesmente por ingerir uma dose mínima dele todos os dias. Por incrível que pareça, a monstruosidade dos nossos tempos já não me choca, e não menos pelo fato de passar parte do dia tentando assimilá-la.
No dia 24 de maio, porém, pela primeira vez, li o jornal e desabei na cadeira, chorando. Minha mulher e meu filho vieram correndo me abraçar, temendo, talvez, que eu estivesse me sentindo ignorada ou preterida.
Mas não foi por isso que chorei.
Sempre senti um amor ridículo por este país, um tipo de paixão brega quase constrangedora de admitir. Talvez porque minha mãe tenha sido imigrante, ou porque meu pai tenha feito fortuna do nada, no melhor estilo Horatio Alger. Quem sabe seja porque, quando me assumi como transgênero, na meia-idade, parecia haver – contra todas as probabilidades – espaço para mim. Sei lá. Talvez seja porque amo rock 'n' roll e os sanduíches submarinos da Filadéfia, o Boston Red Sox e James Cagney. Sim, sou aquele garoto de Yankee Doodle Boy – ou melhor, garota.
O governo Trump vem pensando em diversas formas de limar a identidade trans desde pelo menos o fim do ano passado
A história que me derrubou, entre tantas outras, foi a da proposta de mudança à Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente, retirando dela as proteções civis para a identidade de gênero. A medida não foi inesperada; afinal, o governo Trump vem pensando em diversas formas de limar a identidade trans desde pelo menos o fim do ano passado.
Mas foi essa a gota d'água para esta mulher que vos fala, a medida mais recente entre as várias que nosso homem efetivou somente para tornar a vida de gente como eu ainda mais difícil. No dia 22 de maio, o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano introduziu uma nova disposição que permite aos abrigos para sem-teto com verba federal negar atendimento aos transgêneros – isso depois da proposta, no início do mês, de conceder aos profissionais da saúde a prerrogativa de não atender a pacientes trans por justificativa religiosa.
Fico aqui pensando: por que a existência dos transgêneros é tão intolerável a ponto de fazer os republicanos moverem céus e terras para dificultar ainda mais a nossa vida? É tão impensável assim que esse grupo de norte-americanos já tão marginalizado, ameaçado e desprezado se volte para o homem mais poderoso do mundo esperando proteção – a mesma que, obviamente, Donald Trump prometeu durante sua campanha?
Bom, pelo jeito é. Mas não foi por isso que chorei.
Leia também: Trump, o monstro que se alimenta do medo (artigo de Jennifer Finney Boylan, publicado em 2 de dezembro de 2018)
Também sei muitíssimo bem que a maioria – incluindo vários progressistas como eu – vai dar de ombros para o fato e ignorar as necessidades da minha comunidade, uma obscura "questão de butique". Bill Maher, abençoado seja, uma vez descreveu minha condição como "birrinha de campus universitário". Há anos vários, escritores liberais vêm levantando todo tipo de argumento impertinente e incompreensível sobre a identidade trans e o discurso feminino – o que só serviu para nos dividir, exatamente como a direita cristã planejara desde o início.
Sei que os direitos trans não são prioridade para muitos progressistas e que parte das feministas da segunda onda, lá no fundo – ou nem tanto –, não está muito preocupada com os perigos que corremos.
Mas não foi por isso que chorei.
O que me veio à mente, de fato, foi um poema de William Butler Yeats, September 1913 (Setembro de 1913), obra que reflete a luta e as dores da revolução irlandesa. "Foi para isso que os gansos selvagens abriram as asas cinzentas sobre as marés?", questiona ele, terminando cada estrofe com "A Irlanda romântica está morta, jaz com O'Leary na sepultura".
Pensei nos meus pais, republicanos orgulhosos, os dois. Ele morreu quando eu era nova, mas gostava de discutir as questões atuais comigo, sempre com amor e respeito. Já ela viveu até os 94; em seu último ano de vida, eu lhe preparava o jantar todas as noites e nos sentávamos juntas para assistir à primeira metade de O'Reilly Factor na Fox News e a segunda metade de Countdown With Keith Olbermann, na MSNBC, "para ouvir os dois lados", como ela dizia.
Se estivesse viva em 2016, tenho certeza de que teria votado em Donald Trump. Com muitas reservas, obviamente, mas teria lhe dado seu voto.
Pensei no país em que cresci, um lugar no qual minha mãe, em lágrimas, descrevia Gerald Ford como "Salvador", um lugar em que Ronald Reagan era o "Grande Comunicador". Pensei em todas as pessoas que saíram para votar em 2016 e escolheram o país em que vivemos hoje. Estou falando de vocês, meus vizinhos e amigos. Quando decidiram que queriam recuperar a grandeza dos EUA, era esse o país que tinham em mente?
Vivemos em um país que prende crianças imigrantes; seis morreram sob custódia norte-americana em oito meses. Foi para isso que vocês votaram em Trump?
Os direitos trans não são prioridade para muitos progressistas
Vivemos em um país com uma dívida interna de US$ 22 trilhões e que não para de crescer. E estamos afundados assim não por termos melhorado nossas estradas e pontes, ou aumentado o salário dos professores, ou investido em pesquisa científica, ou feito algo para salvar o meio ambiente, ou recuperado os empregos da classe média, mas porque oferecemos uma gigantesca isenção fiscal aos mais ricos, pura e simplesmente. Foi para isso que vocês votaram em Trump?
Vivemos em um país em que os supremacistas saem em marcha, tochas nas mãos, no qual o presidente zomba dos deficientes, defende a violência e chama a imprensa de "inimiga do povo". Foi para isso que vocês votaram em Trump?
Vivemos em um país no qual a parcela mais desesperada da população é cada vez mais marginalizada. Tá, tudo bem, vocês não são transgêneros e talvez não estejam nem aí conosco; mesmo assim, realmente querem que pessoas como eu sejam banidas dos abrigos? Abrigos para gente em situação de rua, sério mesmo? Foi para isso que vocês votaram em Trump?
Foi por isso que chorei. Não foi porque ele criou esse pesadelo, mas sim porque tanta gente, incluindo muitas pessoas que amo, acha que está tudo bem.
Foi para isso que os gansos selvagens abriram as asas cinzentas sobre as marés?
A América romântica está morta.
Jennifer Finney Boylan é professora de inglês da Barnard College, autora de "Long Black Veil" e contribui para a coluna de opinião.
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