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Durante décadas, o Mercosul e a União Europeia (UE) flertaram com a possibilidade de um acordo comercial ambicioso. Hoje, após 25 anos de negociações, esse pacto parece mais próximo do que nunca, mas ainda está longe de se concretizar. A recente aprovação do texto base pelos negociadores constitui um marco importante, embora o processo ainda enfrente obstáculos significativos, especialmente na Europa.
Neste intricado jogo diplomático e comercial, o Mercosul surge como um bloco ávido por fechar o acordo, enquanto a Europa parece dividida, com a França a liderar uma resistência cada vez mais isolada.
A aprovação do texto base foi alcançada durante a LXV Cúpula de Presidentes dos Estados Partes do Mercosul e Estados Associados, realizada no início de dezembro em Montevidéu, sob a presidência do Uruguai.
Esta etapa encerrou as negociações para a formação da maior zona de livre comércio do mundo e foi encerrada após reunião entre os presidentes dos países membros do Mercosul e o presidente da Comissão Europeia (CE).
É “um acordo que beneficiará ambas as partes e trará benefícios significativos aos consumidores e às empresas”, afirmou Ursula von der Leyen. Isto deverá permitir a eliminação de tarifas para aproximadamente 90% dos produtos exportados para o Mercosul. “Não é apenas uma oportunidade econômica, é uma necessidade política”, acrescentou o presidente da CE.
As negociações começaram em 1999 e foram concluídas com um primeiro compromisso em 2019, mas este não foi validado nessa altura e as conversações só foram retomadas em 2022. Este texto constituiria o acordo de comércio livre mais importante alguma vez assinado pela UE. Abrangeria 780 milhões de pessoas e entre 40.000 e 45.000 milhões de euros em importações e exportações.
Para os países do Mercosul, o acordo com a UE representa mais do que uma conquista comercial: é uma oportunidade para redefinir o seu lugar na economia global
Entre as novidades incorporadas ao acordo estão um protocolo adicional de cooperação, um novo anexo focado no comércio e no desenvolvimento sustentável e um mecanismo de reequilíbrio de concessões, concebido como uma ferramenta fundamental para enfrentar os desafios associados à sua aplicação.
Uma oportunidade histórica para o Mercosul
Para os países do Mercosul, o acordo com a UE representa mais do que uma conquista comercial: é uma oportunidade para redefinir o seu lugar na economia global. Durante anos, o bloco sul-americano dependeu fortemente da exportação de matérias-primas, especialmente produtos agrícolas como soja, carne e cereais.
Uma aliança com a UE permitiria a estas nações aceder a um mercado de mais de 400 milhões de pessoas com tarifas reduzidas e menos barreiras não tarifárias.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, tem sido uma das figuras favoráveis ao acordo, vendo-o como um motor para a recuperação econômica pós-pandemia e uma ferramenta para fortalecer a posição geopolítica da América do Sul. Logo após a cimeira de Montevidéu, o presidente de 79 anos teve de ser submetido a uma cirurgia de emergência devido a uma hemorragia intracraniana, da qual está a recuperar.
Num tom que mistura pragmatismo e urgência, Lula destacou que o tempo está contra o Mercosul, porque as mudanças no comércio global e o surgimento de novos tratados bilaterais podem deixar o conglomerado sul-americano para trás. Numa altura em que a China está a expandir agressivamente a sua influência na América Latina, a UE poderia ser um parceiro estratégico fundamental para equilibrar essa relação.
Com a redução das barreiras tarifárias, o acordo permitiria ao Brasil exportar em setores-chave como o agronegócio, onde tem grande vantagem competitiva, especialmente em carnes, soja, açúcar, café e sucos. Atualmente, os produtos brasileiros enfrentam tarifas elevadas na Europa, portanto o acordo abriria uma janela para aumentar a competitividade nesse mercado.
Do ponto de vista político e econômico, o acordo representa uma oportunidade para o Brasil implementar reformas que alinhem sua economia aos padrões internacionais. Isto inclui melhorar a regulamentação, as políticas ambientais e os direitos laborais, áreas que a UE dá prioridade.
Embora os setores industriais brasileiros tenham demonstrado preocupação com a concorrência com os produtos europeus, o Brasil espera que o acesso a tecnologias e maquinários mais avançados da Europa fortaleça a modernização de sua indústria.
Reclamações e benefícios
Contudo, o entusiasmo geral que existe entre os membros do Mercosul não está isento de tensões internas. A Argentina, ainda imersa numa crise econômica e um ano depois da mudança na cadeira presidencial, mantém uma certa cautela. O presidente Javier Milei demonstrou interesse em priorizar acordos bilaterais, o que poderia complicar a unidade do Mercosul nas fases finais do processo.
Sem entrar em considerações específicas sobre a aproximação com a UE, Milei criticou durante a cúpula de Montevidéu a estrutura e as deficiências históricas do Mercosul, e falou da necessidade de poder negociar fora do bloco sem gerar atritos.
A tarifa externa comum “tornou mais cara a importação de bens produtivos” e “fechou inúmeras rotas comerciais”, disse. O Mercosul, embora “ter nascido com a ideia de aprofundar nossos laços comerciais, acabou se tornando uma prisão”, continuou. “Enquanto vizinhos como Chile e Peru se abriam ao mundo e firmavam acordos comerciais com os protagonistas do comércio global, nós nos trancamos em nosso próprio aquário, levando mais de 20 anos para fechar um acordo como o que celebramos hoje”, Milei comentou.
De qualquer forma, o acordo entre o Mercosul e a UE poderia beneficiar a Argentina ao dar-lhe acesso privilegiado a um dos maiores e mais desenvolvidos mercados do mundo, o que implicaria exportações agroindustriais mais competitivas, com produtos como carne bovina, vinho, azeite, frutas e cereais que poderiam entrar na Europa com tarifas mais baixas, ampliando a sua procura.
Ao mesmo tempo, a aproximação poderia tornar a Argentina mais atraente para o investimento europeu em setores como as energias renováveis, no campo petrolífero de Vaca Muerta e na tecnologia e indústria transformadora.
Uma das maiores aspirações
O Uruguai tem sido outro crítico do ritmo do bloco e tem procurado acordos unilaterais com terceiros países, incluindo a China, como parte da sua estratégia de diversificação comercial. No entanto, um acordo com a UE poderia aliviar as tensões internas e revitalizar o propósito do Mercosul como bloco de integração. Além disso, o pacto materializa uma das maiores aspirações da política externa uruguaia nas últimas décadas.
O Uruguai, que mudará de presidente em 1º de março – assumirá o esquerdista Yamandú Orsi no lugar do centro-direita Luis Lacalle Pou – está entusiasmado com a cooperação das duas regiões, especialmente em áreas como ciência, tecnologia, inovação, energia, indústria, digital e relacionamentos entre MPMEs. Em 2023, a UE passou a ser o terceiro destino das exportações do Uruguai, 17% do total colocado pelo país no exterior.
O acordo permitirá ao Mercosul acessar o mercado europeu com uma cota de 99 mil toneladas de carne bovina, além de 60 mil toneladas de arroz, este último com tarifa zero. Da mesma forma, foram estabelecidos benefícios significativos para produtos como lã, mel, cevada e frutas cítricas; tudo, áreas em que o Uruguai tem algo a dizer.
Do lado paraguaio, a perspectiva em relação a esta realidade é relativamente positiva. O presidente Santiago Peña, que esteve em Paris na segunda-feira, 9 de dezembro, defendeu o acordo entre o Mercosul e a UE diante do principal adversário deste avanço, a França, e do seu presidente, Emmanuel Macron, com quem se encontrou.
“Infelizmente ainda há muita ignorância, muito preconceito, por isso estamos prontos para trabalhar, para sentar à mesa, para avançarmos para um futuro comum com a Europa e o Mercosul”, afirmou em entrevista à agência EFE. No entanto, esclareceu que “ninguém pode sentir-se completamente satisfeito”.
O Paraguai, como parte do Mercosul, obteria condições favoráveis para exportar produtos agrícolas e pecuários, como carne bovina, soja e açúcar, pilares de sua economia. Atualmente, esta nação depende fortemente de mercados regionais como Brasil e Argentina. Portanto, este acordo permitir-lhe-ia reduzir essa dependência, consolidando a sua presença na UE.
A França alertou que recorrerá a todos os mecanismos disponíveis na UE para bloquear o acordo com o Mercosul
Além disso, poderia aproveitar o baixo custo da energia (graças à sua participação em hidrelétricas como Itaipu e Yacyretá) para desenvolver indústrias mais competitivas que possam abastecer o mercado europeu.
França e o dilema europeu
Na Europa, o acordo com o Mercosul não desperta um entusiasmo generalizado. A França, com uma forte tradição protecionista e um setor agrícola com grande peso político, liderou a oposição. Macron salientou que o Mercosul não ofereceu garantias suficientes em termos de sustentabilidade ambiental e respeito pelos direitos laborais.
A partir de Paris, o presidente francês, juntamente com outras autoridades e forças políticas do país, expressou fortes críticas ao acordo. Eles alertaram que usarão todos os mecanismos disponíveis na UE para bloqueá-lo. Entre as suas estratégias está a formação de uma coligação de países dispostos a vetá-lo e, se isso não bastasse, exigirão que a sua aprovação dependa do voto unânime dos Vinte e Sete.
A França sustenta que o tratado prejudicaria gravemente os seus agricultores, que teriam de enfrentar “concorrência desleal”. Segundo Paris, as normas sanitárias e ambientais em vigor nos países do Mercosul não estão à altura das exigências europeias, o que colocaria os produtores franceses em clara desvantagem.
No entanto, a França está cada vez mais isolada. Estados como a Alemanha, a Espanha e os Países Baixos manifestaram o seu apoio ao acordo, argumentando que é uma ferramenta essencial para fortalecer os laços com a América Latina e diversificar as cadeias de abastecimento num contexto de tensões globais. Para estas nações, o acordo não só faz sentido econômico – dado o acesso a produtos agrícolas mais competitivos – mas também sentido estratégico, como contrapeso ao crescimento da China na região.
Além disso, Bruxelas destacou que o acordo inclui um anexo ambiental adicional, elaborado precisamente para responder às preocupações de sustentabilidade. Este instrumento, embora não satisfaça completamente os setores mais críticos, é visto como uma tentativa de encontrar um ponto médio.
Embora a aprovação na Europa pareça um grande obstáculo, também enfrenta desafios no Mercosul. A ratificação do acordo exigirá a aprovação dos seus parlamentos membros, um processo que poderá ser complicado pela dinâmica política interna.
©2024 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Acuerdo Mercosur-UE: oportunidades, tensiones y un camino aún incierto