Perante as informações desencontradas que circulam a respeito do Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia, vale prestar alguns esclarecimentos e buscar informar melhor o debate. O primeiro esclarecimento é que as negociações substantivas foram concluídas em junho de 2019, após impulso fundamental dado pelo Brasil. Desde então, falta unicamente concluir trabalho técnico de revisão legal.
Não se cogita renegociar ou reabrir o acordo. E o motivo é simples: qualquer movimento nesse sentido desmontaria o pacote equilibrado acordado não só entre blocos, mas entre países que conformam cada bloco. E aqui cabe uma explicação adicional para os desavisados: a Comissão Europeia negociava e falava em nome do bloco, mas todos os países membros da União Europeia eram permanentemente consultados. Nenhum deles pode, agora, alegar que desconhecia os termos acordados.
Em segundo lugar, ao contrário do que é repetido seguidamente, sem qualquer fundamento, o Acordo não provocará um “apocalipse ambiental”. Muito pelo contrário. O Mercosul e a União Europeia acordaram os compromissos mais avançados sobre desenvolvimento sustentável de qualquer acordo comercial já negociado pelo bloco europeu. Nada nos textos, nem nos compromissos de acesso a mercados em bens, serviços, investimentos e compras governamentais, criará qualquer ameaça ao meio ambiente.
O Brasil é um país com compromissos internacionais ambiciosos e, em muitos casos, com desempenho em matéria ambiental, energética e de combate à mudança do clima à frente de seus pares europeus
Além de reafirmar todos os seus compromissos internacionais na matéria, as partes criaram espaços de diálogo e cooperação. E, de forma inovadora, o Mercosul aceitou o princípio da precaução para temas ambientais e sociais num acordo comercial. Ou seja, se o acordo com o Mercosul é visto como incompleto ou ruim do ponto de vista ambiental, todos os demais acordos assinados pela União Europeia terão de ser denunciados.
Evidentemente, como já indicamos aos nossos parceiros europeus, estamos dispostos a discutir uma declaração adicional sobre os temas de desenvolvimento sustentável para reafirmar nossos compromissos na matéria. Mas isso não significa que aceitamos a tese de que somos devedores ou de que há um desequilíbrio fundamental no acordo. O Brasil é um país com compromissos internacionais ambiciosos nessas matérias e, em muitos casos, com desempenho em matéria ambiental, energética e de combate à mudança do clima à frente de seus pares europeus.
Nossa visão é de que os desafios ambientais são compartilhados e terão de ser trabalhados em conjunto. Isso inclui temas como o combate ao desmatamento e a mudança do clima. O Brasil terá de fazer sua parte, mas a União Europeia e seus membros também. Mas isso nem sempre parece claro, já que não se vê nenhuma análise crítica ao acordo, na Europa ou no Brasil, em que se recorde a necessidade de redução das emissões derivadas de combustíveis fósseis, a modificação da matriz energética e a alteração de padrões produtivos intensivos e pouco “limpos”, entre outros. E isso é especialmente relevante para a proteção das florestas tropicais, já que, por mais que se preservem as árvores, se as demais emissões continuarem como estão, a mudança do clima poderá acabar, mais cedo ou mais tarde, com a nossa própria Amazônia.
Um quarto esclarecimento, ligado ao anterior, é que tampouco existe qualquer elemento nos textos ou nos compromissos que resulte na violação de direitos sociais e trabalhistas, ou que crie riscos sanitários e fitossanitários. O Acordo incorpora todos os acordos e padrões internacionais mais rígidos seguidos pelas partes. No caso do comércio, esses padrões já regem as trocas entre os dois blocos de forma muito eficaz. Essas afirmações de deficiências, portanto, são infundadas e refletem unicamente as visões de setores protecionistas ou contrários, por princípio, aos acordos de livre comércio.
O quinto esclarecimento, e sem dúvida o mais relevante para mim, diz respeito à importância do que foi negociado. No meio do atual ruído ensurdecedor criado pelos opositores ao acordo, perdeu-se de vista a magnitude do que foi negociado. Estamos falando de um instrumento legal que integrará economias que representam 25% do PIB global, maior, portanto, que o Comprehensive and Progressive Agreement for TransPacific Partnership (CPTPP), com seus 13,4% do PIB mundial. O Acordo pode ter um impacto extraordinariamente positivo para os dois blocos, para seus setores produtivos e populações, gerando novas oportunidades e empregos e, no caso específico do Mercosul, com potencial de diminuir a pobreza e a desigualdade. O acordo também reúne pilares político e de cooperação que consolidarão nossa parceria estratégica e podem criar novos vínculos, inclusive em termos de atuação e inserção internacional.
Espero, portanto, que algumas vozes destoem do coro atual e ajudem a defender o enorme valor do que foi acordado. O sexto e último esclarecimento, que pode parecer desnecessário, mas que talvez seja útil para eventual leitor europeu deste artigo, é que os países do Mercosul também têm governos, parlamentos, grupos de interesse, opinião pública, setores produtivos, entre outros. Ou seja, não basta saber o que o lado europeu aceita ou opina, nem será somente o lado europeu a definir o futuro do acordo. As duas partes decidirão, de forma soberana, e em igualdade de condições, se o acordo entrará, algum dia, em vigor ou não.
Feitos estes esclarecimentos, que têm sido deixados algo de lado na atual campanha de desinformação que busca transformar o acordo em algo que ele evidentemente não é, fica a expectativa de que os interessados no tema, sejam eles contra ou a favor, lembrem que se negociou um Acordo de Associação (e aqui vale enfatizar a palavra “associação”) com base na boa fé e no respeito mútuo, e com a expectativa de que se transforme em instrumento de cooperação, trabalho conjunto e transformação para o benefício de nossas sociedades.
Pedro Miguel da Costa e Silva é secretario de Negociações Bilaterais e Regionais nas Américas do Ministério das Relações Exteriores.