O Acordo Ortográfico que entrou em vigor este ano parece ter a aprovação de alguns usuários, mas existem outros que detectam incoerências com respeito ao uso do hífen. Cabe observar que o sinal de ligação de palavras compostas também ocasiona problemas em outros idiomas como o francês, o holandês e o inglês. Com respeito ao hífen, o Shorter Oxford English Dictionary tomou a decisão de deixar "perecer" um bom número de hifens. Segundo Angus Stevenson organizador da obra, os falantes de inglês são inseguros quanto ao emprego de hifens e nem sempre sabem para que servem. O vocábulo ice-cream "sorvete" (outrora com hífen) já é grafado ice cream (somente com espaço) e cry-baby "chorão" é crybaby (sem hífen e sem espaço). Os critérios para o uso ou não do hífen não são sempre transparentes para os falantes de língua inglesa.
Há também outro grupo de observadores do idioma que consideram as mudanças ainda bastante tímidas. Talvez alguns desses usuários alimentem um desejo de eliminar, em nome da modernidade, todas as marcas diacríticas para realizar uma suposta "eficiência" linguística, emulando o inglês, que é desprovido de acentos. Suprimir acentos a ferro e a fogo em português não procede, pois eles, em certos casos, contribuem para a identificação de vocábulos que poderiam ser confundidos: sabiá (o pássaro), sábio(a) (inteligente) ambos com acento agudo e sabia (pretérito imperfeito do verbo saber).
O retorno da letra k, (as letras k, y e w nunca foram suprimidas pelos dicionários!) é procedente porque ela sempre foi de longa data empregada pelos usuários do português para nomear os povos indígenas brasileiros e seus respectivos idiomas: Kaiowá, Kaingang e Kayapó.
Quem "pelejava" outrora com hifens, grafias difíceis e acentos na época da máquina de escrever, tinha de parar o trabalho para consultar um dicionário no momento de uma dúvida. Graças aos programas de correção automática e aos dicionários eletrônicos, os indivíduos que elaboram trabalhos hoje em dia não perdem tanto tempo, pois o computador corrige, num piscar de olhos, os que escorregam na grafia de exceção ou que confundem a grafia de ascensão e assunção. Daí se vê que a celeuma em torno do Acordo é algo exagerada, pois o processador de palavras libera os usuários da parte mecânica do idioma para refletir sobre o estilo, a organização e estruturação de suas ideias. Até os pontos polêmicos com respeito à hifenização podem ser definitivamente resolvidos uma vez que os responsáveis pelo Acordo decidem o que é considerado "correto" e o que não o é.
Se todos os países de língua portuguesa realmente sancionarem o Acordo (e não voltarem atrás), o saldo positivo vai ser a eliminação, em certos casos, da duplicidade de grafias. Os vocábulos em itálico nas sentenças que seguem teriam a unificação das grafias em todas as nações lusófonas: "uma boa ideia", "ela para sempre para conversar", "os políticos leem muitos jornais", tornando assim o português mais simples para os seus falantes e também para os que têm interesse em aprendê-lo. Embora o Acordo retire algumas grafias duplas no Brasil e em Portugal, a intenção não é a uniformização completa do português. Tentar uniformizar o idioma é quimérico, pois todas as línguas resistem a ser homogenizadas. É justamente a grande variedade existente da "última flor de Lacio, inculta e bela" que torna o português, rico e digno de estudo e divulgação.
No Brasil, emprega-se o gerúndio: "estou trabalhando", "ela está viajando" ao passo que em Portugal ouve-se mais o infinitivo "estou a trabalhar", "ela está a viajar". Em Portugal "acostamento" de estrada é "berma". Com respeito à grafia de cidades, em Portugal escreve-se Amsterdão e Helsínquia enquanto no Brasil, optamos por Amsterdã e Helsinki. Alguns números também apresentam pronúncia e grafia diferentes: dezessete e dezenove aqui no Brasil e lá em Portugal dezassete e dezanove.
É importante não haver mal-entendidos com respeito ao Acordo. Ele contribui para diminuir algumas marcas diacríticas desnecessárias e em segundo lugar, reduzir o número de hifens em certos vocábulos, mas de nenhuma forma interfere na variabilidade de expressão das diferentes "vozes" lusófonas. Existe outra contribuição do Acordo que nem sempre é percebida pelo público em geral. Ele é, na realidade, um ato geopolítico em prol da divulgação e da expansão do português como idioma de cultura e de ciência em nível internacional. O que importa, no fundo, é algo que o Acordo, por si só, não garante: o diálogo entre os países de língua portuguesa com o intuito de consolidar a lusofonia como espaço político-cultural perante as outras "vozes" os mundos francófono, hispanófono, anglófono, entre outros.
John Robert Schmitz é professor do Departamento de Linguística Aplicada do Instituto dos Estudos da Linguagem da Unicamp.
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