É uma ilusão acreditar que o cessar-fogo entre Israel e o Hamas – e a troca de reféns israelenses por detentos palestinos – é o começo de um acordo de paz após quase dois meses de uma guerra. O jogo é outro. O otimismo é entendível, mas, infelizmente, a guerra está longe de terminar. O cessar-fogo recente é apenas uma trégua tática para o Hamas e a necessidade moral para Israel de reaver os mais de 240 reféns originalmente sequestrados em 7 de outubro diante de sua opinião pública.
Quem acredita nas boas intenções desse grupo terrorista brutal ao propor essa parada deve acreditar também no Papai Noel e coelhinho da Páscoa. O Hamas apelava para um cessar-fogo há semanas por estar abalado com a perda de controle do Norte da Faixa de Gaza após a incursão terrestre do exército israelense. De seus cerca de 30 mil combatentes, mais de 5 mil foram mortos por forças israelenses. Boa parte de seu arsenal de foguetes, mísseis, metralhadoras e outras armas de fogo foi destruído ou apreendido por Israel.
O Hamas precisava de tempo para se reorganizar, retirar líderes e combatentes do Norte de Gaza, nomear novos líderes e distribuir armamentos para os sobreviventes do grupo. Para isso quis o cessar-fogo. Nada mais. Reparem que em momento algum escrevi que o Hamas tem interesse numa trégua para salvar vidas de palestinos. Não tem. Quanto mais mártires, melhor, assim vencerá Israel também na arena midiática.
Para Israel, por outro lado, a parada no avanço das tropas em Gaza é uma péssima notícia, estrategicamente falando. O momentum da incursão terrestre é interrompido, deixando os soldados israelenses que estão dentro do território vulneráveis a ataques-surpresa de terroristas que decidam violar o cessar-fogo (e sempre é o Hamas que viola cessar-fogos desde o primeiro conflito com Israel, em 2008).
O único interesse de Israel, neste momento, é a retirada dos reféns por uma obrigação moral em relação a seus cidadãos, mesmo que isso signifique retroceder em seus objetivos militares e políticos: destruir a infraestrutura do Hamas e acabar com o governo tirânico desse grupo terrorista, que não só ameaça e ataca Israel desde 2008 como mantém 2 milhões de palestinos sob sua mão de ferro.
Mas esse retrocesso na campanha militar de Israel é polêmico e, por isso, o acordo de cessar-fogo é criticado internamente por alguns israelenses que julgam ser um erro. Em troca de 50 ou 80 reféns, Israel estaria colocando a perder a oportunidade de acabar com as capacidades paramilitares do Hamas de uma vez por todas, após anos de ataques com foguetes e o terrível pogrom de 7 de outubro.
Esses críticos, porém, são minoria. A maioria dos israelenses precisava reaver e rever os reféns. A moral do país, tão em baixa há quase dois meses em meio a tantas lágrimas e preocupação, precisava ser elevada. Além disso, os líderes de Israel precisavam cumprir o acordo tácito que têm com o público: nunca deixar ninguém para trás, nem civis nem militares.
Para o Hamas, no entanto, o objetivo do cessar-fogo é apenas um: rearmamento para uma nova rodada de ataques contra Israel. Para ele e todos os outros grupos jihadistas fundamentalistas (como Jihad Islâmica, Hezbollah, Estado Islâmico, Al Qaeda, Talibã, Boko Haram, Houthis e outros), o conceito de trégua é diferente. Não se trata de uma desaceleração das hostilidades com o objetivo, quem sabe, de negociar um acordo para o fim dessas hostilidades. Não. Cessar-fogo é um conceito previsto no Alcorão com a finalidade de reagrupar as tropas para a próxima fase da guerra.
O Hamas e seus pares não entendem a noção de "win-win situation", em que os dois lados possam terminar um conflito após fazerem concessões, mas conseguindo algumas vitórias. Quer dizer: nada de negociações e acordos de paz. Acreditam apenas no chamado jogo de "soma-zero", a vitória completa de um lado sobre o outro. A guerra só termina quando um dos lados obliterar o outro, varrê-lo da face da Terra. E nem que isso demore décadas, séculos. Milênios.
Não é à toa que um dos líderes do Hamas, Ghazi Hamad, disse em uma recente entrevista a uma TV libanesa que o Hamas repetirá o massacre desumano de 7 de outubro, no qual mais de 1.200 pessoas foram cruelmente massacradas, "até que Israel seja aniquilado". A ideia de uma resolução em que os dois lados consigam alguma melhoria, mas sem vencer totalmente o outro, é previsto pela Teoria de jogos, ramo da matemática aplicada que estuda situações estratégicas onde "jogadores" escolhem diferentes ações na tentativa de melhorar seu retorno. O melhor para cada jogador é vencer totalmente o outro lado. Mas, em caso de isso não ser possível ou correto, a segunda opção melhor é o empate. Perder seria a terceira e pior opção.
Para o Hamas, a opção do empate não existe. A possibilidade de parar com o ódio fundamentalista contra os judeus, admitir a existência do Estado de Israel 75 anos depois de sua independência e, quem sabe, fazer uma aliança que transformasse a Palestina e a região inteira numa Dubai não existe. Para o Hamas, a opção de que tanto Israel quanto os palestinos vivam em paz, com Estados nacionais próprios e independentes, não existe.
Os terroristas, enlouquecidos por anos de doutrinação antissemita e conspiratória e promessas de riqueza e honra caso matem ou sequestrem "infiéis", só consideram duas possibilidade "soma-zero": ganhar ou perder tudo. E se perderem, se tornarão mártires. Na verdade, isso também seria uma vitória. Como participantes do famoso "jogo da galinha", o Hamas aperta no acelerador de um carro imaginário que vai em direção a um caminhão enorme e muito mais poderoso (Israel) que vem do outro lado de uma estrada. E mesmo que seu carro esteja repleto de palestinos inocentes, o Hamas não se importa em acelerar.
Cabe ao caminhão ter o bom senso que falta ao outro lado, diminuindo ao máximo o número de vítimas desse jogo real e mortal. Parar o caminhão sem cair no precipício e sem matar todos os que estão no carro rival requer uma estratégia corajosa e extremamente difícil. Requer saber que uma vitória total e completa de qualquer lado é impossível. Derrubar o Hamas, sim. É interesse de todos, principalmente dos próprios palestinos. Mas, o resultado dessa guerra deveria ser um "win-win situation". Dois Estados para dois povos vivendo lado a lado, em paz e cooperação.
Daniela Kresch é correspondente do Instituto Brasil-Israel (IBI)em Tel Aviv; jornalista há mais de 20 anos em Israel.