Assisti recentemente ao fantástico filme A Grande Aposta, um dos indicados ao Oscar em 2016. O longa é baseado em uma história real sobre quatro investidores que perceberam que a bolha imobiliária estava prestes a explodir, gerando, em seguida, a grande crise econômica de 2008. O ponto alto foi a sacada de Michael Burry, interpretado pelo ator Christian Bale, de que uma série de empréstimos feitos para o mercado imobiliário corria risco de inadimplência.
A partir de então, Michael vislumbrou uma grande oportunidade de se ganhar muito dinheiro: apostando contra o mercado. Basicamente, ele só ganharia dinheiro se o sistema financeiro mundial desmoronasse. Claramente, ninguém acreditava nele. Vale ressaltar que Burry não tem formação financeira formal. Ele começou a administrar fundos quando estava cursando a faculdade de Medicina. A favor dele havia apenas a análise fria dos números, da lógica, e um faro excepcional para novas oportunidades.
Mas esse artigo não trata exatamente da trama do filme, e sim de uma frase que apareceu já nos créditos finais – e que me chamou muito a atenção. Nela era dito que atualmente Michael Burry está investindo em uma commodity inusitada: água. Estranho? Curioso, talvez. E nada ilógico. Pesquisando algumas entrevistas recentes dele, descobri que, mais do que investir em água, ele está investindo no valor agregado que a água traz: alimentos que precisam de muita água para serem cultivados. Em suma, ele está interessado na água que está dentro dos alimentos, o que torna muito mais fácil o transporte e comercialização. Onde há água em abundância para a produção de alimentos e onde não há água em abundância. Oferta e demanda.
Isto deveria chamar nossa atenção. É mais um exemplo do valor da água. De quão importante ela foi, é, e cada vez mais será. Possuir água – e controlá-la – é sinônimo de poder e riqueza. Porém, ela não existe de maneira uniforme no mundo. É uma commodity que tem variabilidade temporal e espacial. Assim, cria-se uma receita para a geração de valor, desenvolvimento e riqueza: guardar água quando se sobra, para usar quando não se tem e transportar de onde se tem para onde não há. Michael Burry quer ganhar dinheiro transportando água de onde há para onde não há. Mais que um modelo de negócio, é também a propagação de ideias e práticas ESG.
E é neste ponto que chegamos à situação atual do Brasil. Somos um dos países do mundo com maior disponibilidade hídrica. Na distribuição espacial da água, fomos presenteados pela natureza. Temos os maiores rios e aquíferos do mundo. Mas, por motivos diversos, estamos perdendo a oportunidade de ouro: não estamos guardando adequadamente na fartura para usar na seca. Não estamos seguindo os passos de Michael Burry.
“Não existe almoço grátis”, frase clássica popularizada pelo economista americano Milton Friedman, é cirúrgica e ilustra bem o nosso caso. Precisamos guardar água quando sobra. E não há como fazer isso sem pagar o almoço – no caso, sem construir reservatórios. Os reservatórios são a nossa caderneta de poupança. É nosso investimento mais seguro e confiável. Eles permitem guardar água na fartura para usar na seca. Permitem o abastecimento de água tratada para consumo humano, água para irrigação, para a agropecuária, para as indústrias.
Os reservatórios permitem que as cheias que chegam às cidades não sejam tão grandes, pois grande parte da água excedente é armazenada neles. Basicamente, amenizam os picos do ciclo hidrológico. E mais: permitem a geração da energia hidrelétrica: fonte de energia barata, limpa e renovável, e com tecnologia 100% nacional. Permitem a navegação em rios caudalosos. Permitem o lazer, a piscicultura... Como abdicar dos usos múltiplos dos reservatórios? Como não os querer?
Água armazenada é sinônimo de riqueza. Não por acaso, os países desenvolvidos têm os maiores índices de consumo de água per capita: 575 litros nos Estados Unidos; 493 litros na Austrália; 396 litros na Itália; 374 litros no Japão, enquanto no Brasil são 187 litros de consumo médio per capita. No mundo inteiro, apenas 40 litros per capita. Não obstante os desperdícios que devem ser combatidos – e eles existem –, percebe-se que a água disponível para a população é um parâmetro claro de desenvolvimento.
Dias atrás, estava folheando um livro didático sobre saneamento ambiental, utilizado em faculdades de Engenharia. Ele prega a não construção de reservatórios devido aos impactos ambientais, deixando de explicar todas as vantagens de tê-los. Estamos ensinando aos nossos futuros engenheiros que reservatórios não são um bom negócio. Chama a atenção também o processo de criminalização dos reservatórios e das usinas hidrelétricas – conhecimento especulativo imposto por alguns setores da sociedade.
Não se nega aqui os impactos socioambientais causados pelos reservatórios. Estes devem ser avaliados; se possível, eliminados; e, se não, mitigados e compensados. O ponto a ser tocado é que os benefícios da construção de reservatórios são tão grandes, mas tão grandes, que suplantam com folga os impactos negativos. Não podemos deixar passar a oportunidade de usar a água como trampolim para o desenvolvimento. É de se perguntar por que tantos organismos internacionais, inclusive de fomento ao desenvolvimento, veem os reservatórios com maus olhos. Será que os países desenvolvidos possuem um potencial hídrico não aproveitado tão grande quanto o Brasil? Ou será que eles já fizeram o dever de casa, já construíram seus reservatórios para usos múltiplos e, portanto, não os fazem mais porque não têm mais locais para tal? Por que algo que foi claramente muito bom para estes países também não o seria para o Brasil?
O setor elétrico brasileiro não implementou a reserva de energia nos últimos 30 anos através de reservatórios, mas privilegiou usinas a fio d’água. Este fato criou forte distorção operacional, uma vez que a capacidade de energia armazenada permaneceu fixa e a carga cresceu, o que obriga, frequentemente, o recurso à operação térmica para suprir o déficit.
Mesmo novos reservatórios na bacia do Rio Amazonas, tão criticados, alagariam (uma única vez, e com a criação de uma área de proteção ambiental permanente ao redor) uma pequena fração do que é desmatado anualmente. Somente em 2020 o desmatamento na Amazônia Legal foi da ordem de 8 mil km²; a título de comparação, três reservatórios planejados no Rio Xingu a montante da UHE Belo Monte, hoje descartados pelo Estado, inundariam uma área adicional de 2 mil km², em região, em grande parte, já desmatada e/ou eutrofizada, com mínimo impacto em áreas indígenas.
Passamos e estamos passando por uma crise de abastecimento de água em algumas regiões do país, que está trazendo consigo uma crise energética. Por que não estamos vendo nenhuma campanha maciça a favor de novos reservatórios, de maneira a diminuir a probabilidade de ocorrência deste grave problema no futuro? Com relação à energia hidrelétrica, por que a sociedade não defende com unhas e dentes a construção de novos reservatórios de acumulação, de maneira a garantir a geração hidráulica mesmo nos períodos de estiagem, evitando o acionamento de termelétricas (caras e poluentes), como tem ocorrido sistematicamente?
Brasil, sigamos o exemplo de Michael Burry: vamos investir em água!
Diego Baptista de Souza é engenheiro civil, mestre em Engenharia de Recursos Hídricos e Ambiental e diretor de Energia e Recursos Hídricos na Nova Engevix Engenharia.