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No fim do século 18, mais precisamente em 1799, o teólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher assumiu a incômoda tarefa de falar uma vez mais sobre religião aos homens de seu tempo. A empreitada era particularmente difícil porque, ao final daquele século, a Europa iluminista e pós-revolução francesa, via o assunto com uma particular repulsa. Schleiermacher estava tão ciente disso que nomeou os escritos reunidos de “Sobre a religião: discursos a seus desprezadores cultos”.

Já nas primeiras linhas, o autor praticamente se desculpa por “aventurar-se” a colocar o assunto em pauta para tão augusta audiência de homens e mulheres que já haviam se “erguido por sobre o vulgar” e que, uma vez que “tornaram suas vidas terrenas tão ricas e variadas”, “criaram um universo para si mesmos, ficando dispensados de pensar em um Universo criador”. Assim, desde lá, religião não é assunto que se apresente a pessoas intelectualmente bem formadas. E parece que os tempos recentes estão aí para provar tal tese. Enquanto nós forjamos uma vida “tão rica e variada”, da penicilina ao iPhone, os religiosos radicais matam, explodem e aterrorizam. De fato, para grande parte das pessoas inteligentes, a expressão “religiosos radicais” é praticamente uma tautologia. Não seria isso então exatamente a prova definitiva de que devemos deixar crenças tão vulgares para nossos ingênuos antepassados?

O primeiro problema com isso é que justamente porque progressivamente banimos a plausibilidade de qualquer coisa que não seja o universo de sentido que criamos, grande parte das análises sobre os últimos acontecimentos falha terrivelmente. Isso porque há uma enorme dificuldade em compreender algo que já esquecemos sobre nós mesmos, a saber, que o que criamos foi erigido sobre uma visão de mundo, um conjunto de princípios e valores julgados como preferíveis, que necessariamente antecede qualquer criação humana.

É só porque julgamos preferível a verdade é que fazemos ciência. É só porque julgamos desejável o bem é que pensamos em ética. E, goste-se ou não, no Ocidente essa visão de mundo foi forjada a partir do Cristianismo e de tudo o que ele assumiu, assimilou e reordenou, seja a filosofia grega, sejam as instituições romanas.

Obviamente, sempre cabe retomar a pergunta legítima que a modernidade se faz há pelo menos dois séculos: não seria o caso de prosseguirmos adiante apenas com o impulso, com os efeitos benéficos, e nos livrarmos daquela plataforma inútil após o salto? Afinal, é indiscutivelmente possível preferir o bem, o belo e o verdadeiro sem o Cristianismo em qualquer de suas expressões. No entanto, e aqui está o segundo problema, estamos vendo, uma vez mais, quão frágeis podemos ser ante a ameaça do mal, do horror e do erro. Eles são opções plausíveis na vida e no mundo. E que por vezes nós possamos gestá-los no interior de nós mesmos só deveria aprofundar a consciência do risco.

Ao contrário do que poderiam pensar os “cultos desprezadores” da religião, foi precisamente determinada tradição religiosa que, ao aceitar certa razoabilidade do mundo e da ação humana, bem como ao incorporar no seu sistema de sentido as contribuições dos “outros” – gregos, romanos e árabes – mostrou-se como condição de possibilidade do próprio desenvolvimento das “luzes”. É preciso compreender, então, que o Cristianismo, para o que nós entendemos como civilização, não é apenas a plataforma de onde saltamos. É também a rede de segurança.

Gabriel Ferreira é doutor em Filosofia e professor na Unisinos
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