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Não é só o Alexandre de Moraes: também gostaríamos de poder censurar os outros

O ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Confesse, você já quis fazer como o Alexandre de Moraes e calar a boca de muita gente. (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

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Quem nunca pediu a cabeça de um colunista ou jornalista ao ler algo de que não gostou que atire a primeira pedra. Gostamos de usar o argumento da liberdade de expressão para defender nosso direito de falar o que nos vem à cabeça, mas ao mesmo tempo nem sempre reconhecemos que os outros – todos os outros – também são agraciados com esse direito constitucional. No fundo, gostaríamos de viver numa bolha perfeita que reverberasse apenas aquilo com que concordamos, desejamos ou acreditamos. Seria o paraíso. Ou não?

Imagine, caro leitor, um mundo encantado da Disney onde apenas as suas ideias existissem. Todos os jornais, todas as tvs, todas as rádios, streamings, filmes, redes sociais ecoando apenas aquilo que você acredita ser o correto, a verdade, o lógico, o desejável. Tudo o que você lesse, ouvisse ou visse, todos os colunistas, escritores, jornalistas, comentaristas, poetas e artistas concordando em gênero, número e grau com tuas ideias – seja lá quais forem.

Viver em uma realidade que não comporta o contraditório, não aceita a existência e a legitimidade de ideias e posições distintas é uma história de terror e não um conto da Disney.

Qualquer comentário seu nas redes sociais, do emoticon ao textão, seriam chancelados por milhares de curtidas, afinal, todo mundo concordaria com o que você postasse, pois seria exatamente a mesma coisa que todo mundo postaria. Nesse paraíso, não existiria espaço para nenhuma ideia diferente. Para defender tal utopia, aqui e ali talvez fosse necessário eliminar um ou outro desgarrado, mas tudo bem. Faz parte do jogo.

Individualmente, haveria a sensação maravilhosa de saber-se sempre certo, não ter dúvidas, não ser questionado ou confrontado, nem ter de defender ou argumentar a favor das próprias ideias; não precisaríamos convencer ninguém – nem nós mesmos. Consegue imaginar a satisfação de viver em uma realidade assim? Uma sociedade sem confrontos, debates, brigas de WhatsApp, partidos políticos (desnecessários, pois todos teriam os mesmos objetivos), religiões distintas (igualmente desnecessárias; haveria uma única concepção da relação do homem com o Deus)?

Aqui e ali pipocam tentativas de estabelecer horrores assim. Todos projetos medonhos porque viver em uma realidade que não comporta o contraditório, não aceita a existência e a legitimidade de ideias e posições distintas é uma história de terror e não um conto da Disney. Regimes totalitários – sejam de esquerda ou de direita, não existe "menos pior" nesse caso – amam sociedades do pensamento único. É uma obsessão de toda ditadura ter a imprensa amordaçada, as vozes discordantes caladas e uma única bandeira hasteada.

Cada vez que pedimos a cabeça de alguém por ter falado ou escrito algo com que não concordamos, estamos com um pezinho na mesma ânsia dos ditadores: querendo calar aquilo que confronta nossas ideias ou questiona nossas certezas. Já vimos isso muitas e muitas vezes no mundo e aqui na esquina. Durante as eleições isso foi uma constante. Jornais e pessoas caladas sem critério algum, verdades sendo impedidas de serem ditas. Xandão e sua trupe sambaram na cara da liberdade de pensamento e expressão – esperamos que isso não se perpetue.

Obviamente não podemos comparar a atuação de alguém que possui poder – como um membro do Judiciário ou agente político – com a nossa, simples cidadãos mais ou menos ocupados com os rumos do país. Mas nossa posição e atitude em relação à liberdade de expressão importam muito mais do que você pensa. Achar que só nós temos o direito de falar, escrever, opinar sobre a realidade e que os outros – ah, esses outros! – deveriam sem calados (e aí leia-se demitidos, expulsos do Facebook, bloqueados e coisas do gênero), é um indício perigoso de que não entendemos muito bem o que é essa tal liberdade.

Leu ou ouviu algo de que não gostou ou não concorda? Então debata, aponte as contradições, os erros do argumento do autor, apresente seu próprio ponto de vista sobre o tema. É isso que faz uma sociedade minimamente civilizada: a capacidade de conviver com o diferente, mesmo que seja algo que conteste tudo aquilo que você acredita ou defende.

Jocelaine Santos é jornalista e editora na Gazeta do Povo.

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