Para realizar tratamento de informações cerebrais que lhe são associadas, inclusive as que envolvem coordenação motora, a comunicação oral coloca mais pressão no sistema biopsíquico do que a comunicação escrita. Todavia, o desenvolvimento da fala prescinde de instrução explícita, o que não ocorre com o desenvolvimento da leitura.
As evidências científicas, há quase meio século, indicam que a escrita alfabética se baseia em um código. Nele, unidades gráficas de escrita representam unidades acústicas da fala. O modo como isso se realiza é altamente complexo e sua compreensão exige conhecimentos que vão da física à medicina, passando pela matemática. Isso dificulta, tanto para educadores profissionais quanto para pais e sociedade, a percepção de que o crucial para o aprendizado da leitura é o processamento de informações sonoras portadoras de valor linguístico.
Ler não é natural. Mas também não é sobrenatural
A manipulação consciente e mecânica dos elementos que formam o código alfabético, bem como o conhecimento das regras que o fazem funcionar, referem-se, predominantemente, à linguagem oral. Mas, diferentemente do que ocorre na comunicação oral – altamente produtiva porque a gestão dos elementos fonológicos e acústicos se faz de modo automático e inconsciente –, o uso da escrita obriga à manipulação consciente desses elementos. Isso sobrecarrega a memória fonológica de trabalho, componente do sistema de funções executivas centrais do cérebro.
A comunicação escrita, entretanto, perderia produtividade se nunca pudesse dar tratamento automatizado e inconsciente aos aspectos fonológicos e acústicos que lhe são intrínsecos.
Acontece que – a ciência o demonstrou – ler não é aprender a ler. O aprendizado da leitura é longo e difícil. Começa-se na condição de analfabeto, entra-se na condição de leitor iniciante, passa-se pela condição de leitor hábil e chega-se à condição de leitor expert. Em sistemas educacionais eficazes, a maioria dos alunos, aos 10 ou 11 anos, é leitor hábil. Isso significa ter deixado para trás a fase em que o tratamento dos aspectos fonológicos e acústicos era mecânico e consciente. No leitor hábil esse tratamento é automatizado e inconsciente, inclusive porque a prática controlada da leitura na fase de leitor iniciante faz uma reciclagem nas redes neuronais que tratam a informação visual e sonora. Por que essa reciclagem? Porque o cérebro humano dispõe, naturalmente, de recursos para tratar, separadamente, informações visuais e informações sonoras, mas não dispõe de redes neuronais destinadas especialmente ao tratamento de informações sonoras portadoras de valor linguístico envelopadas em informações visuais, característica da escrita alfabética.
Ler não é natural. Mas também não é sobrenatural.
Na fase inicial do aprendizado da leitura, a alfabetização, o esforço principal tem de estar no ensino explícito e sistemático do princípio alfabético e nas regras de decodificação. A compreensão não é negligenciada. Mas as atividades precisam ser didática e cronologicamente distintas: não se ensina a ler e a compreender no mesmo momento didático. Nem com os mesmos materiais.
Ora, a alfabetização demanda, de um lado – e esse é o ponto crucial –, o desenvolvimento da linguagem oral. De outro, o desenvolvimento do sistema de controle das funções executivas. Nos dois casos os focos são a tomada de consciência das unidades fonológicas das palavras faladas e suas estruturas: sílaba, ataque, rima e coda, e, ainda, o treino da memória fonológica de trabalho. Didaticamente falando: desenvolvimento da consciência fonológica e exercício de manipulação de fonemas, divididos em substituição, adição, inversão e supressão de fonemas. Poderíamos falar aqui em pré-alfabetização.
Desde que a criança fale, e desde que seu sistema executivo central esteja em dia, ela pode ser alfabetizada. Nada impede que seja aos 4 anos. Ou aos 5. Isso vai depender de vários fatores, como o nível de transparência da relação grafema/fonema na escrita da língua, a complexidade silábica dessa língua e a motivação da criança.
A ciência tem mostrado que a antecipação exagerada da alfabetização não rende muitos frutos. Mas conduzi-la equivocada e tardiamente aumenta, e muito, o risco de tropeço na trajetória escolar.
Esperar que toda criança brasileira esteja alfabetizada até os 8 anos de idade, quando mais de 80% já frequentam escola desde os 4, em horizonte que vai até 2024, conforme o Plano Nacional de Educação, é contratar o aumento futuro do mau desempenho e do fracasso escolar.
Algum pai de classe média ou alta aceita essa meta para seu filho?