| Foto: Gerd Altmann/Pixabay
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O Direito, enquanto ciência normativa, perpassa, em escala global, por uma convulsão estrutural na sua forma de existência e aplicação prática. O fenômeno da digitalização, que engendra uma simbiose inaudita entre o mundo físico off-line e o mundo virtual on-line, dando origem ao que se cognomina de mundo on-life, torna as decisões humanas cada vez mais prescindíveis, incluindo a esfera jurídica. Expressões como algoritmos, Big Data, inteligência artificial, blockchain e cloud computing fazem parte indissociável da atual comunicação social nas áreas da economia, do consumo e também do Direito. Decisões automatizadas, por intermédio de algoritmos e sistemas tecnológicos de inteligência que se desenvolvem autonomamente, já estão inseridas no cotidiano das relações sociais e econômicas, constituindo uma nova ambiência na assim chamada sociedade da informação. Nesta nova sociedade global e tecnológica, os dados digitais constituem o epicentro da chamada transformação digital do mercado e de todas as esferas da vida social.

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Os dados digitais, face a sua atual relevância econômica, são equiparáveis, por muitos, ao petróleo, tendo em vista que as grandes (e maiores!) corporações empresariais utilizam-se deste insumo para gerar lucro, como o Facebook e o Google. Malgrado a valia e as inúmeras possibilidades de utilização dos dados pessoais, um arquétipo normativo protetivo dos direitos de personalidade e da autonomia individual é um prerrequisito irrefragável em qualquer Estado que queira ostentar o qualificativo de democrático e constitucional. Na Europa, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) entrou em vigor em 2018, na condição de norma vinculante e como modelo aos Estados-membros para a elaboração das respectivas legislações nacionais. Tal regulamento, sem embargo, também serviu de paradigma para a confecção da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, que, em sua parte substancial, entrou em vigor no ano de 2020. Tanto no Brasil quanto nos demais sistemas jurídicos de um modo geral, o direito fundamental à autodeterminação informativa deve ser assegurado, em especial o direito do indivíduo de decidir sobre o uso e a divulgação de seus dados pessoais.

Os algoritmos digitais e a inteligência artificial, esta última enquanto reprodução digitalmente estruturada de decisões semelhantes às humanas de modo independente, em virtude sobremaneira dos chamados Big Data, alicerçam hoje um novo modelo de governança por intermédio de sistemas de tecnologia da informação, influenciando estilos de vida, o consumo, a cultura e mesmo as tomadas de decisões políticas. Neste ambiente caracterizado de “capitalismo de vigilância”, torna-se premente e inelutável a garantia da segurança por meio da integridade e da confidencialidade dos sistemas computacionais, protegendo-os contra manipulações e acesso indevido a dados pessoais desde a própria configuração técnica do sistema Protection by Design.

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A transformação digital da economia, da cultura, da política e do Direito traz consigo uma gama infindável de oportunidades em termos de bem-estar público e individual. Porém, a questão-chave que se antepõe a essa revolução tecnológica é como o sistema jurídico pode reduzir, ou mesmo neutralizar, os riscos associados envolvendo mormente a autonomia individual e a proteção dos dados pessoais, num contexto em que as pessoas estão se transformando em digital unconscious.

Abordando o cenário disruptivo da Legal Technology, a obra Teoria Geral do Direito Digital, do jurista e ex-juiz da Corte Constitucional alemã Wolfgang Hoffmann-Riem – que representa hoje uma das principais vozes sobre o tema na Alemanha e na Europa –, recém-publicada no Brasil, deve ser um ponto de referência central para lidarmos com os desafios postos pela digitalização. O autor alemão delineia novas conjecturas para o campo do Direito a partir da implementação no sistema jurídico de regras digitais automatizadas, e a utilização cada vez mais frequente dos sistemas de tecnologia da informação.

Em suma, o direito digital, desde a configuração dos algoritmos digitais enquanto regras técnicas, e por meio da chamada inteligência artificial, neutraliza, em determinados casos, as decisões humanas, e executa automaticamente a norma legal, como, por exemplo, limitando, em termos técnicos, a autonomia na condução do automóvel para evitar transgressões ao código de trânsito, bloqueando o acesso ou a divulgação de certos conteúdos na internet, interrompendo, de modo automático, no âmbito dos smart contracts, a habitação alugada em caso de falta de pagamento, ou mesmo impedindo o funcionamento do automóvel se uma prestação não for paga. Neste iter, a própria figura do juiz humano poderá ser, em certos casos, dispensável.

O emprego dos Big Data pelas grandes corporações empresariais e por órgãos do Estado, em especial no que se refere à dimensão e à diversidade dos dados que podem ser utilizados para a aplicação das tecnologias digitais, e à variedade de opções de combinação e tratamento dos mesmos pelas autoridades públicas e privadas em distintos contextos, requer um controle regulado. Hoffmann-Riem propõe, de modo original, uma espécie de autorregulamentação regulada, no sentido de que as autoridades públicas deveriam exercer uma influência regulatória na forma como a sociedade (e as corporações) se autorregula, assumindo preocupações de bem-estar público no cumprimento de tarefas privadas.

É, de fato, impossível excogitar todas as facetas e possibilidades que se abrem no mundo do Direito defronte a revolução tecnológica da digitalização. O que se pode antecipar é que tal fenômeno tem alcance global, impactando de forma estruturalmente equiparável diversos ordenamentos jurídicos, o que potencializará o estudo do direito comparado e internacional, e a intensificação do diálogo entre diversos países.+

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Italo Roberto Fuhrmann é advogado e professor de Direito Constitucional e Internacional.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]