A PEC dos Precatórios (PEC 23/2021), em tramitação no Congresso, evidencia o total descompromisso do governo federal com os princípios e as regras do Estado Democrático de Direito.
Em meio à falácia de que o Ministério da Economia foi surpreendido com o aumento do valor dos precatórios para 2022, a PEC defendida pelo governo é uma perversa violação aos direitos de milhões de credores. São pessoas físicas e jurídicas, idosos, portadores de deficiência e doenças graves, que aguardam há décadas o recebimento de seus direitos – declarados por força de sentença condenatória transitada em julgado pelo Poder Judiciário – em desfavor do poder público.
Mas não só isso. A pretexto de abrir espaço fiscal para a ampliação do programa de assistência Auxílio Brasil no próximo ano, a emenda proposta não só viola direitos fundamentais dos credores como também promove a possibilidade de furar o teto de gastos, numa verdadeira pedalada fiscal, criando regras para desvinculação das receitas. Ou seja, estabelece mais inconstitucionalidades em um país cujo cenário, por si só, já padece com crises econômicas e políticas.
Temos, então, o seguinte panorama – jurídico e socioeconômico. Por um lado, o calote proposto configura ataque direto ao Estado Democrático de Direito, porque vilipendia diversas garantias e direitos fundamentais, conquistados com suor e lágrimas por gerações de brasileiros que lutaram pela redemocratização do país. Por outro, a política antieconômica proposta traz incongruente conteúdo. Ela torna vulnerável a imagem do Brasil no exterior; diminui o potencial de crescimento econômico; aumenta vertiginosamente a dívida pública; reduz o consumo das famílias, aumenta o desemprego e afasta investidores diante da insegurança jurídica e do risco fiscal.
A aprovação da PEC vai prejudicar, além de pessoas mais vulneráveis, os professores e as empresas, no curto e médio prazo. Na prática, também contribuirá para a destruição de riquezas, sendo nociva à retomada da atividade econômica.
PEC evidencia o total descompromisso do governo federal com os princípios e as regras do Estado Democrático de Direito.
Vale lembrar que os precatórios são dívidas da União com pessoas físicas, jurídicas, estados e municípios, reconhecidas em decisões judiciais definitivas e que devem ser pagas pelo governo com previsão anual no Orçamento. O cidadão ingressa na Justiça, enfrenta um percurso processual longo – que pode durar mais de 30 anos – e, quando finalmente tem seu direito julgado procedente, o credor ainda tem de entrar em uma “fila” de ordem cronológica para o recebimento do valor devido.
Ainda que penosa e aflitiva a via percorrida, reconhece-se que o atual regime de pagamento dos precatórios tem passado por aprimoramentos sucessivos. O sistema que temos hoje não é igual ao que tínhamos há dez anos. Muitas mudanças foram implementadas de lá para cá, mas vale ressaltar que o atual regime de precatórios teve seus alicerces firmados pelas recentes mudanças constitucionais. Elas se fundamentaram no julgamento das ADIs 4.357 e 4.425, quando a suprema corte considerou que a moratória para quitação de precatório viola “a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, artigo 1.º, caput), o princípio da separação de poderes (CF, artigo 2.º), o postulado da isonomia (CF, artigo 5.º), a garantia do acesso à Justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, artigo 5.º, XXXV), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, artigo 5.º, XXXVI)”.
Essa retrospectiva é necessária para se concluir o óbvio: a PEC 23 propõe o retrocesso das normas jurídicas plenamente estabelecidas. É inconstitucional porque fere direitos fundamentais e regras orçamentárias e fiscais, além de impor verdadeiro óbice ao desenvolvimento econômico do país. Na verdade, a PEC dos Precatórios virou pretexto para tudo. Incluíram furo no teto, parcelamento para município, flexibilização da regra de ouro, desvinculação de receita. O precatório agora é só o nome da PEC, porque há muitos assuntos estranhos.
Entendemos que o debate no Congresso precisa ser mais aprofundado, discutido tecnicamente. É preciso separar os temas. É um grave erro misturar todos esses assuntos, de tanta relevância, numa PEC só, que começou em tese para resolver o problema do Auxílio Brasil. A solução para os precatórios no país pressupõe o respeito à Carta Magna e, de forma sincronizada, a garantia de equilíbrio das contas públicas do país.
Eduardo Gouvêa é presidente da Comissão de Precatórios da OAB Nacional.