Nossos vizinhos latino-americanos estão assanhadíssimos com a visita que o presidente George W. Bush fará ao Brasil em breve e já se apressam a dar conselhos e mandar recados ao governo brasileiro.

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O indefectível Hugo Chávez, cujas "ironias" com os americanos estão cada dia mais rombudas e menos irônicas, oferece um potinho de enxofre para que Lula enfrente o Belzebu. Em minha solene ignorância dos ritos do exorcismo, sempre acreditei que para enfrentar demônios presumidos, águas bentas e crucifixos fossem mais eficientes do que enxofre, mas se Chávez o disse, boa parte de nossa gauche deslumbrada o seguirá, o que faz temer pelos estoques nacionais do produto. O que livra Chávez da mais absoluta irrelevância é o petróleo venezuelano. Mas é exatamente a questão do petróleo que deve incomodá-lo especialmente na visita de Bush, pois um dos temas centrais das negociações será a produção de etanol.

Os Estados Unidos elegeram o etanol como o principal substituto do petróleo e pretendem triplicar o consumo de álcool nos próximos anos para reduzir sua dependência dos combustíveis fósseis. Ora, o álcool americano, extraído do milho, não é apenas mais caro; há um outro problema mais sério: a economia agrícola americana é baseada no cereal e redirecionar a produção para produzir energia significará reduzir a oferta para as rações e os alimentos à base de milho, encarecendo-os substancialmente e obrigando à revisão da matriz produtiva. Onde entra o Brasil? O álcool é uma fonte de bioenergia em que o Brasil pode vir a ter uma competitividade insuperável, pois temos tecnologia avançada na produção à base de cana-de-açucar, terras abundantes, sol o ano inteiro em vastas áreas do país e proximidade geográfica com os Estados Unidos e a Europa. E é claro que, para quem atualmente supre 15% das importações americanas de óleo, como é o caso da Venezuela, uma aproximação entre os Estados Unidos e o Brasil nessa questão energética não soa exatamente como música.

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O presidente Néstor Kirchner não perdeu tempo para lembrar que os laços de solidariedade latino-americanos são graníticos e que Bush não conseguirá nos dividir. De que laços graníticos de solidariedade fala o presidente argentino? O Brasil e o lado hispânico do continente nunca foram solidários em nada ou quase nada. A geografia nos dividiu, a história e os interesses geopolíticos também. Brasil e Argentina, os dois países de maior expressão econômica da América do Sul são capazes, no máximo, de manter uma relação ciclotímica em que se sucedem tapas e beijos, sendo que no governo de Kirchner, o Brasil tem recebido mais tapas do que beijos. O Mercosul como proposta de integração sub-regional está falido e, nos últimos anos, o governo argentino tem se preocupado em garantir a sobrevida de alguns setores de sua economia à custa de impor restrições aos produtos brasileiros dinamitando-o mais ainda. A aproximação de Kirchner com Chávez é compreensível, pois a Venezuela tem sido um financiador atencioso que periodicamente compra títulos internacionais emitidos pela Argentina, cuja aceitação no mercado financeiro internacional é bastante reduzida apesar dos economistas jurarem que o país está plenamente redimida do calote internacional que aplicou há cinco anos. Quanto à Bolivia, nosso atual nêmesis por conta dos problemas da Petrobrás, é preciso ver as coisas em perspectiva e lembrar que dentro de três ou quatro anos o Brasil poderá ser auto-suficiente em gás e então a conversa entre nossos dois governos mudará necessariamente de tom.

Em síntese: é sempre útil lembrar que países têm interesses, não têm amizades. A amizade é um atributo dos humanos ou mesmo dos animais e não dos países. Os povos brasileiro e argentino são amigos, como são os brasileiros e venezuelanos e podem sê-lo ainda mais porque têm em comum habitarem três países com recursos naturais e culturais admiráveis, vitimados por séculos de maus governos. Mas quando se trata de interesses nacionais e negócios, a conversa é outra, como aliás sempre foi, por parte de nossos vizinhos.

Na atual conjuntura mundial, o Brasil vê abrir-se uma enorme janela de oportunidade com a crise energética e o futuro da agroindústria. Devemos mais é nos afastar desse primarismo geopolítico que tem caracterizado nossos vizinhos. Ou até mais, afastar-nos definitivamente da persistente maldição que assola alguns dos países de nosso pobre continente: o de sermos eternamente temerosos de negociar com os americanos. Isso é puro e simples complexo de inferioridade. E, afinal, como diz o provérbio popular, e repete meu querido amigo Raul Viana Júnior, para quem já está no inferno, que é que custa dar mais um abraço no diabo?