Em fevereiro de 2017, chegava quase ao fim o período de quatro meses que eu passara em uma estação remota na Antártida, reunindo dados para minha tese de doutorado. Donald Trump tinha sido empossado um mês antes e a expressão "mudança climática" já tinha desaparecido do site da Casa Branca. O ânimo dos cientistas no fim do mundo mudara drasticamente: nós, que já fôramos líderes nos estudos das mudanças climáticas, de repente estávamos sendo postos de lado.
Por volta da última semana de nossa expedição ao Lago Hoare, uma região do continente árida e muito semelhante às paisagens marcianas, a Fundação Nacional de Ciência, nossa patrocinadora, avisou que Anthony Bourdain estava chegando para nos entrevistar para seu programa Parts Unknown, da CNN. Muitos o conheciam como chef e gourmet, mas a Antártida não é exatamente famosa pela gastronomia local. Lá não há restaurantes estrelados pelo Michelin (ou de qualquer outro tipo), de modo que, em meio à empolgação geral, havia também certa dúvida a respeito de sua visita.
Depois de um dia longo – e frio de doer – coletando amostras de água derretida das geleiras para análise de seus componentes biológicos e químicos, nós nos reunimos todos em volta de um laptop, em preparação à sua chegada, assistindo a um trecho de seu programa anterior, No Reservations, em que Bourdain come um coração de serpente que ainda batia.
"Só espero que ele não resolva comer o pinguim", disse Rae Spain, a supervisora do acampamento, famosa em todo o continente por sua capacidade de pegar um frango que foi congelado em 2012 e uma lata de seleta de legumes com data de validade desconhecida e transformar tudo em um prato indiano cinco estrelas. Ela seria a responsável pela comida que dividiríamos com Bourdain e sua equipe.
"Só espero que ele não resolva comer o pinguim"
A presença de uma celebridade como ele e as dificuldades que enfrentaria preocupavam. Afinal, a Antártida é o lugar mais frio, mais seco e mais ventoso do planeta. Será que ele ficaria bem, dormindo em uma barraca? Encararia bem a comida? A água era tão escassa no acampamento que tomávamos banho só uma vez por semana. Será que ia se importar?
Depois de uma maratona de episódios de sua atração, deixamos o medo de lado. Esse sujeito tinha navegado o Rio Congo enquanto tentava matar e preparar uma galinha no escuro; ao lado da equipe, tinha ficado preso em um hotel no Líbano, em 2006, durante o confronto entre Israel e o Hezbollah; aceitara agradecido e consumira ânus de javali cru na Namíbia. Ficaria superbem na Antártida.
Bourdain, cuja morte completou um ano no início deste mês, chegou com um sorriso tranquilizador. "Oi, sou o Tony", disse apenas, durante as apresentações. A maior parte das nossas tentativas iniciais de socialização tinha a ver basicamente com comida. Perguntamos como foi comer globo ocular, quais as melhores e as piores refeições que fizera. "Posso dizer com certeza que o pior prato que comi até hoje, de longe, é o McNugget", contou. Ele era fácil de conversa. E se mostrou curioso em relação a nós.
Spain preparou um jantar excepcional naquela noite. Bourdain descobriu como ela conseguia transformar nossas opções limitadíssimas de ingredientes em pratos ridiculamente saborosos (seu segredo: uma coleção pessoal imensa de temperos e especiarias), mas estava mais interessado em sua história. O que a levava a continuar no gelo depois de 34 anos?
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Bourdain prometeu que não ia se concentrar nas esquisitices do comportamento dos pinguins; estava mais interessado em conhecer os projetos em que estávamos trabalhando e em saber por que os cientistas se dedicam à pesquisa em um lugar tão inóspito. Ele sabia muito bem que a ciência e a pesquisa climática estavam sob ameaça no novo governo. "No início do século 20, quando cientistas e exploradores eram heróis nacionais, havia um grande apetite pelo conhecimento e pelas descobertas", comentou ele, para acrescentar em seguida: "Já o clima em que vivemos hoje não é lá muito bom para os fatos. O mundo está cada vez mais hostil a basicamente tudo que vocês representam".
Durante o dia, ficávamos de lá para cá em um deserto polar, registrando informações sobre aquecimento, derretimento glacial e enchentes a serem acrescentadas aos dados coletados há 25 anos, para ajudar a identificar as tendências; à noite, líamos os e-mails dos colegas que estavam tentando desesperadamente proteger seus dados, pois temiam que seria tudo deletado dos sites governamentais. E ali, à nossa mesinha dobrável, estava Bourdain, dando-nos espaço para discutir nossas pesquisas em um programa de tevê de grande audiência. Ele direcionou os holofotes para nossos esforços de coleta e análise de dados essenciais para o entendimento da mutação climática.
"Este é o último lugar do planeta onde a ciência parece ser valorizada em todos os níveis da sociedade, onde as pessoas continuam fazendo sacrifícios pessoais enormes em nome e em busca do conhecimento. Na minha terra, isso é algo muito bizarro. É maravilhoso. Vocês só precisam de mais divulgação", sentenciou Bourdain.
Bourdain não foi à Antártida por causa da comida. Ele raramente ia a algum lugar por causa da culinária. Ela era apenas um ponto em comum. Era um gancho de conversa
E foi exatamente o que o programa dele nos deu. Ver Parts Unknown: Antártida nos encheu de esperança, pois valorizou nosso trabalho meticuloso num momento em que a pesquisa climática estava sendo atacada em Washington (e, infelizmente, continua).
Ao fim do jantar, convencêramos Bourdain a sair conosco para uma volta até um lago gelado e suas margens arenosas para jogar frisbee. E lhe demos um par de crampons (grampos) para colocar sobre os sapatos. "Esse negócio seria excelente na hora de sair do bar", comentou enquanto caminhávamos, cambaleantes, sobre o gelo. Sentamo-nos todos na "praia" vendo o sol da meia-noite se pôr atrás de uma montanha, falando de ciência e de viagens.
Ao fim da visita, sugerimos contratá-lo para fazer parte da nossa equipe de amostragem biológica. Ele respondeu dizendo que certamente seria demitido por "exagerar na amostragem do bacon".
Ele não foi à Antártida por causa da comida. Basta assistir aos episódios de seu programa para ver que raramente ia a algum lugar por causa da culinária. Ela era apenas um ponto em comum. Era um gancho de conversa. E a conversa naquele fim de semana foi sobre ciência. Anthony Bourdain, que teria completado 63 anos neste 25 de junho, foi nosso defensor, assim como foi para tantos outros.
Angela Zoumplis é bióloga polar da Instituição Scripps de Oceanografia da Universidade da Califórnia, em San Diego.
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