O modelo do sistema elétrico pressupõe que podemos confiar no Estado para garantir a nossa segurança energética. Mas a história mostra que não podemos. São vários exemplos, como a crise nacional de 2001, o blecaute da Ilha de Santa Catarina em 2003, assim como o apagão no Brasil em 2009 e que pôs às escuras 90% do Paraguai. Agora é a vez do Amapá, com enormes danos aos cidadãos, por vários dias seguidos.
A interrupção da energia no Amapá foi uma tragédia anunciada, porque decorre do modelo elétrico ultrapassado e da ineficiência estatal. Há um ano já se sabia que o transformador de reserva estava inoperante na Subestação Macapá, na interface entre a linha de transmissão de alta voltagem e os cabos que distribuem localmente a energia. Não havia segurança para garantir a continuidade do suprimento de energia aos amapaenses. Em situação confusa, de um lado dessa interface, responsável pela transmissão e pela subestação, estava uma concessionária em processo de falência (Isolux), que transferiu a titularidade para outra empresa (Gemini) e mesmo assim não foi fiscalizada in loco pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Curiosamente, a União é dona de 15% dessa concessionária de transmissão, por intermédio da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), autarquia do governo federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).
Do outro lado da interface, a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), controlada pelo governo do Amapá, caracterizada por ser uma estatal ineficiente, endividada e com péssimos índices de qualidade. Para ilustrar, o indicador de perdas não técnicas da companhia é próximo de 60%, um dos piores do país. Isso significa que não consegue nem sequer cobrar cerca de três quintos de toda a energia que fornece aos amapaenses. Os 40% da população que pagam sua conta de energia estão carregando, indiretamente, o peso dos outros 60% que não pagam. É um perverso subsídio cruzado, que tira renda e competitividade, afasta novos negócios e empregos, assim como onera aqueles que agem corretamente. Analogamente, uma padaria não sobreviveria se perdesse 60% dos pães que fabrica. Só sobreviveria sendo estatal, em que o prejuízo é assumido pelo governo, que o retransmite em seguida para os consumidores e os pagadores de impostos. Uma bola de neve que atinge a população.
Para a sorte de muitos brasileiros, o apagão do Amapá aconteceu no fim da linha. Se fosse em outro ponto, no meio do sistema, o desbalanceamento da rede poderia levar ao efeito dominó, derrubando várias cidades e estados. Os imensuráveis danos à sociedade amapaense, ainda mais em época de pandemia, estariam sendo vivenciados por milhões espalhados pelo Brasil. Muito se fala da apuração de responsabilidades e ressarcimento de danos. Isso é fundamental e precisa ser feito. Contudo, precisamos dar um passo para fora do problema, pensar fora da caixa e ter foco na verdadeira solução. Só consertar o transformador queimado não resolve, nem elimina a possibilidade de mais apagões. Não podemos conviver, nem ficar inertes, ao risco de pane elétrica nacional.
A solução existe e é possível. Depende de corrigir três pilares do modelo elétrico brasileiro.
O primeiro é eliminar o regime de concessão. Ao contrário do que alguns têm falado erroneamente, concessão nada tem a ver com privatização. São coisas bem diferentes. Na concessão, os serviços e as instalações de energia elétrica são apenas explorados, indiretamente, por empresas públicas ou privadas. Em última instância, todos os bens são reversíveis à propriedade da União e, portanto, estatais. Tanto é que os investimentos e instalações construídas pela empresa – pública ou privada – deverão ser ressarcidos pela União, na forma de aumento da tarifa controlada pelo Estado, ou mediante indenização se o bem não tiver sido amortizado ou depreciado ao fim do prazo contratual.
A concessão é ruim e incompatível com a segurança energética por três motivos. Primeiramente, ela depende da inércia estatal para promover licitações. Ou seja, depende da (in)eficiência do serviço público brasileiro. O cidadão não tem liberdade para propor projetos e ampliações conforme seu interesse. Se isso fosse possível, seria razoável ponderar que algum empreendedor amapaense já teria identificado a oportunidade, assim como construído, por sua própria conta, uma usina e estrutura de rede para fornecer energia elétrica às residências em Macapá ou em outras cidades do estado. Poderia, inclusive, aproveitar a mão de obra e as potencialidades locais, a partir de fontes como solar, biomassa ou pequenas centrais hidrelétricas, entre outras alternativas.
Além disso, o bem público é mantido pelo “inquilino” de plantão. A palavra inquilino é usada pela analogia a um imóvel alugado, em que o dono tende a cuidar melhor do que o inquilino – o concessionário. Diante de milhares de quilômetros de linhas de transmissão e de distribuição, assim como uma enorme diversidade de projetos de geração de energia, é uma tarefa complexa e cara para União, por intermédio do seu órgão regulador, fiscalizar de forma adequada os bens que são de sua propriedade. Vide o transformador inoperante há um ano no Amapá.
Por fim, o concessionário detém exclusividade de área, com reserva de mercado. Um novo bairro na cidade, a construção de um shopping center ou um comércio que passa a requerer maiores quantidades de energia ficam dependentes da boa vontade do concessionário em lhes atender. O mesmo vale para um fazendeiro ou uma indústria. O estímulo econômico natural para isso acontecer é limitado, porque não se trata de livre mercado. Não há concorrência, não há negociação, não há possibilidade de outro empreendedor ofertar naquela área. A expansão do atendimento está vinculada ao contrato de concessão, que nasce garantindo a remuneração do concessionário.
Em vez da concessão, o modelo deveria permitir o regime de autorização para geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, que está expressamente previsto na Constituição de 1988. Isso não se trata de quebrar paradigmas, pois existe experiência exitosa com autorização no próprio modelo elétrico, desde a introdução da figura do produtor independente de energia. A autorização também é mais célere e menos burocrática para atender aos anseios da sociedade, além de plenamente compatível com estruturas de rede, como transmissão e distribuição. Por essas razões, a autorização foi o pilar central da nova lei do gás natural, justamente por suas vantagens frente aos problemas da concessão. Além disso, a autorização não depende da inércia do Estado. A iniciativa e a vontade podem partir do particular. O bem é de sua inteira propriedade e, assim, tende a ter muito mais cuidado e zelo do que se fosse um inquilino. Ademais, é um modelo que induz competição, favorece o consumidor e não tem tarifa garantida pela União. Desse modo, uma empresa autorizada – pública ou privada – é estimulada a ser eficiente e a atender melhor à população, com qualidade, regularidade e segurança.
O segundo pilar a ser corrigido é a excessiva centralização, pois é incompatível com a dimensão territorial do Brasil. Alguns se orgulham em dizer que temos um sistema interligado nacional com as dimensões da Europa. Decerto, é salutar. Mas a forma atual implica que um único órgão central tem o poder para dizer quem, como, onde e quando a energia será produzida e despachada para todo o país. Comparativamente, seria como se a Alemanha determinasse o despacho de uma hidrelétrica em Portugal para suprir a Polônia e, paralelamente, proibisse o funcionamento de uma termelétrica a gás na Rússia. No caso concreto, um servidor público em Brasília buscando resolver o apagão no Amapá, a cerca de 2 mil quilômetros de distância. Depender somente da interligação centralizada e controlada pelo Estado é um enorme risco, seja por ineficiência, incidente, acidente ou mesmo proposital. Em um eventual conflito bélico, por exemplo, uma linha de transmissão é um alvo extremamente frágil. Sua derrubada colocará o país de joelhos rapidamente.
O terceiro pilar é garantir autonomia para o cidadão comprar energia de quem desejar. A figura do consumidor livre já existe em lei desde 1995. Contudo, até hoje não foi operacionalizada pelo Poder Executivo, que proíbe o pequeno e médio consumidor de optar por assegurar seu próprio suprimento energético, de maneira livre, sem intervenção.
Energia é um bem essencial para todos, mas não podemos esquecer que, na hierarquia de necessidades, está atrás da nossa alimentação. Mas nem por isso, neste caso, temos um órgão central com a presunção de garantir a segurança alimentar, tampouco a intervenção estatal determinando como cada alimento será produzido, distribuído, vendido e entregue à população. A diversificação e a geração distribuída de energia, próximas dos centros de consumo, com despacho descentralizado, têm várias externalidades positivas. Além disso, trazem concorrência, reduzem tarifas e diminuem o risco de apagões. Junto com a mudança de concessão para autorização, são parte da solução. Enquanto sociedade, devemos assegurar autonomia e liberdade para os cidadãos empreenderem e encontrarem soluções energéticas complementares à inércia estatal.
Ricardo Borges Gomide é mestre em Engenharia, especialista em Políticas e Gestão Governamental, e há 19 anos trabalha na área de energia.
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