A recente discussão sobre a constitucionalidade da medida provisória apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro e que estabelecia mudanças no Marco Civil da Internet nos remete a uma máxima simplória, mas cheia de significado: Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Neste caso, a falta de legitimidade do instrumento utilizado e os objetivos que motivaram a apresentação dessa matéria são uma coisa. Já a necessidade de se criar alguns instrumentos para regular as mídias sociais é outra.
Para tornar a analogia um pouco mais sofisticada e manter o tema no âmbito da luta pela liberdade de expressão, podemos usar a licença poética e criar uma versão da obra de Chico Buarque. “Apesar da MP, a regulação das mídias sociais deve acontecer algum dia”. Isso significa reconhecer o óbvio. Da forma como foi apresentada, a MP tem um caráter político circunstancial e visa defender os interesses do presidente. Sob o ponto de vista estrutural, ela é inconstitucional. À MP falta o caráter de urgência essencial para uma proposta deste tipo. Apesar disso, no conteúdo, a MP não é de todo ruim. A regulação das empresas de internet é um movimento que precisamos e devemos adotar em algum momento. Ou será que deixamos passar a melhor oportunidade?
As redes sociais muito menos possibilitam o exercício do direito constitucional de revisão das decisões proferidas.
Da forma como o Marco Civil da Internet foi construído, ele só trouxe benefícios para dois tipos de organização: as empresas de telecomunicações e as grandes empresas de internet. Eles não se responsabilizam por nada. O objeto tratado no Marco Civil refere-se a eles, mas não os atinge. O ônus é suportado pelo usuário, sujeito a situações que não pode compreender e sem poder determinar o alcance de tecnologias e direitos. Esta situação de hipossuficiência comprovada do usuário evidencia a pertinência da discussão sobre a necessidade de se regular a retirada de conteúdo, por exemplo.
É preciso criar mecanismos para evitar que, unilateralmente, as empresas de internet tirem o conteúdo sem a formação de um devido processo legal, que é um direito fundamental. Aliás, existe vasta jurisprudência e doutrina que amplia o alcance desse direito fundamental para empresas e particulares, ou seja, não é mistério algum que o princípio constitucional do devido processo legal deve também ser aplicado nas práticas de retirada de conteúdo. Hoje, a única forma autorizada por lei de retirada de conteúdo unilateral, sem notificação, é relacionado à questão de direitos autorais.
Regular as mídias sociais é importante, necessário e está demorando para acontecer. A MP, principalmente pela forma como foi feita, é descabida, mas é preciso que existam projetos de lei para avançar nessa direção. Os processos para se estabelecer os limites e como se darão essas retiradas de conteúdo devem ter como objetivo a efetividade dos direitos e dos princípios constitucionais. Esta deveria ser a luta de todos. Devem ser estabelecidas as molduras sobre como esse processo será construído, quais serão os fundamentos e os meios em que se implementarão os direitos dos usuários, agora titulares de dados.
As redes sociais hoje em dia não entregam nada sobre os seus processos decisórios de retirada de conteúdo. Não justificam os fundamentos legais e contratuais sobre os quais se embasaram. Cabe ressaltar que a fundamentação das decisões é direito constitucional e as redes sociais não estão fora desse alcance legal. As redes sociais muito menos possibilitam o exercício do direito constitucional de revisão das decisões proferidas. Elas simplesmente excluem os conteúdos e impedem a sua efetiva restituição.
Dizer simplesmente que qualquer restrição à liberdade de expressão é ruim não é correto. Nem a preocupação com a falta de citação à questão das fake news deve ser vista como obstáculo para essa discussão. Nas discussões empreendidas, sempre há o esquecimento proposital de um princípio constitucional implícito, que é o princípio da verdade. A verdade é formadora do Estado brasileiro como seu fundamento jurídico. Desta forma, ainda que as fake news não estejam citadas explicitamente em um projeto, ou na MP, é fato que isso não precisa ser explícito. A verdade é algo determinante para a construção do ordenamento jurídico, das práticas sociais e jurídicas dentro da Constituição Brasileira.
Que saibamos separar uma coisa da outra. Que a derrubada da MP não signifique o fim da discussão. A regulação feita da forma correta, com ampla oportunidade de debate, é o caminho para que a liberdade de expressão seja garantida com os seus direitos, seus deveres, seus limites e justificativas, por meio da transparência construída em processos legítimos.
Victor Hugo Pereira Gonçalves é autor de “Marco Civil da Internet Comentado” e presidente do Instituto Brasileiro de Defesa da Proteção de Dados Pessoais, Compliance e Segurança da Informação (Sigilo).
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