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Aqueles que queimam livros: uma obra com muitas portas e poucas chaves

George Steiner (1929-2020). (Foto: Wikimedia Commons)

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George Steiner, autor de Aqueles que queimam livros, nasceu em 1929, em Viena. De origem judia, Steiner e sua família se mudaram para a França ameaçados pela eminente invasão nazista. Mais tarde, morando nos Estados Unidos, Steiner descobriria que apenas ele e mais um colega de sua turma sobreviveram ao Holocausto. Atualmente, Steiner é considerado um dos maiores expoentes da crítica literária do século XX, falecendo, aos 90 anos, em 3 de fevereiro de 2020.

Além de ávido leitor, Steiner também foi um excelente prosador. Sua prosa escancara uma erudição capaz de criar uma entusiasmante abordagem crítica literária dosada com teoria e prática. O triunfo de Steiner se revela em sua capacidade de descrever a experiência humana (literária) com extrema exatidão. Onde está a excelência do escritor senão no esforço de lapidar e manejar as palavras até que, por fim, exibam uma forma menos insatisfatória de expressão das ideias?

É sabido que a oralidade precede a escrita. Em diversas culturas e tempos, ela esteve cumprindo seu papel na transmissão do ensino e construção da cultura.

Na qualidade de um excelente leitor e escritor, Steiner nos presenteia com Aqueles que queimam livros, um ensaio sobre a experiência que o livro, até mesmo com erro de tradução, pode causar ao leitor, tornando-o convertido a uma espécie de ideologia ou religião. Essa conversão, contudo, não se utiliza de grandiosos prenúncios; ela pode acontecer por meio de um livro adquirido em um sebo há muito tempo esquecido e  empoeirado. Quando você menos espera, dizia Borges, a beleza te assaltará na esquina e você não será mais o mesmo. Você será um dos convertidos.

Tal é a profundidade dessa experiência que, até os dias atuais, os livros representam uma ameaça aos governos totalitários, o medo dos tiranos. Ora, não é para menos, pois nessa experiência dialética, quase sempre inexplicável em palavras, o leitor poderá encontrar a chave de sua melhoria ou degradação, que o abrirá uma nova realidade. Quantas revoluções não se iniciaram no encontro do leitor e seu livro? Como pontua Steiner, “nossas intimidades com um livro são, portanto, completamente dialéticas e recíprocas: lemos o livro, porém, mais profundamente, pode ser o livro que nos lê”. A censura seguirá perseguindo a literatura de forma sutil, trajada de politicamente correto ou, até mesmo, promovendo queima de livros como nos alerta Heine: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas”.

Aqueles que queimam livros é uma espécie de cartografia da experiência literária, até onde se é possível mapear, e, o mais importante, levanta questões relevantes inerentes a ela. Uma prova de que as perguntas corretas jorram da fonte da erudição que muito se esforça no trabalho árduo de descrever os dados da realidade.

É sabido que a oralidade precede a escrita. Em diversas culturas e tempos, ela esteve cumprindo seu papel na transmissão do ensino e construção da cultura. Então, em meio à história humana, emerge o “povo do livro”, cujo Deus é o logos divino que se revela por meio da textualidade. Seu apego pelo texto e o viver a partir dele, diz Steiner, torna o judaísmo uma etnia singular, o “povo do livro”. Tal designação encontra expressão máxima na própria história do povo judeu que, diferentemente de povos ainda mais antigos, perdurou vivo pelo cuidado com o texto. “Enquanto pudesse levar consigo as Escrituras, estudá-las incansavelmente, anotá-las, glosá-las, comentá-las, o judeu poderia preservar sua identidade, frutificá-la. [...]”, escreve Steiner.

Ao passo que o autor nos leva pela linha temporal da formação identitária do povo judeu, ele não nos furta da oportunidade de refletir sobre a aparente esterilidade criativa desse mesmo povo. Ao “murmurar incansavelmente os textos rituais e litúrgicos decorados e recitados mecanicamente” a criatividade espontânea e sensibilidade literária sumiram do repertório judaico. A rejeição aos ensinamentos de Platão e Jesus, ambos transmitidos pela oralidade, são sinais de que essa esterilidade é de natureza idólatra ao texto. “A sinagoga é cegada por seu literalismo, por seu fechamento nas estáticas minúcias do texto e do comentário, por sua idolatria à letra”.

Steiner também expressa, sobretudo no último ensaio, seus receios, dos quais partilho, com relação à tecnologia e seu impacto na vida dos leitores. Em 1999, ele já enxergava os efeitos ameaçadores que tal relação causaria na tradição judaica da textualidade, da memorização e do comentário. Nesse ensaio, Steiner exerce o papel profético de trazer à memória aquilo que definiu os judeus como o “povo do livro”, e alertá-los dos perigos da modernidade.

Neste terceiro e último ensaio, Steiner lança luz sobre os seguintes perigos e limites da textualidade: os livros possibilitam o monopólio do conhecimento por uma elite dominante; os livros limitam o debate uma vez que são desprovidos dos artifícios da oralidade que possibilitam uma comunicação mais apurada e, por último, os livros colaboram para o declínio da arte da memorização, portanto, comprometendo o aspecto formativo do indivíduo que antes se utilizava de mitologias para compreender a realidade. “Saber ‘de cor’ significa ser possuído, deixar o mito, a prece, o poema se ramificar e se expandir em nós, modificar, enriquecer nossa paisagem interior enquanto percorremos nosso caminho”, enfatiza. Ainda segundo Steiner, as tensões entre oralidade e textualidade, letra e espírito, dificilmente terão fim. De forma ainda mais contundente, ele reforça seus receios em relação às mudanças que a tecnologia causou na forma como nos relacionamos com os livros, aquela profunda experiência já citada no primeiro ensaio. Pessoalmente, senti-me representado em cada elaborada descrição que Steiner dá às angústias da modernidade hiperconectada que eu não sabia nomear.

Aqueles que queimam livros segue atual e suscitando discussões, como um bom livro que converte deve ser. Steiner ocupa um espaço especial em minha biblioteca, em meio aos livros de filosofia e crítica literária. Sinto que encontrei um grande autor em um livro de 70 páginas, onde há muitas portas e poucas chaves.

Pedro Miquelasso é produtor de conteúdo sobre literatura no YouTube.

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