Quando criança, costumava fazer planos e projetos de todo tipo. Como diria um amigo mais tarde, a impressão que tínhamos era a de que para todos eles darem certo era só uma questão de esperar o tempo passar e virarmos adultos. Um desses planos era o de descobrir qual o melhor lugar para viver no Brasil. Para isso, eram mais que suficientes os dois volumes de “Geografia Ilustrada” que tínhamos em casa: do cruzamento de informações relativas ao clima, vegetação, população, relêvo, economia, bem indicados por meio de arvorezinhas, boizinhos, fábricas, cachoeiras e outros símbolos, concluí que a cidade ideal para morar seria Ponta Grossa. Cidade que, aliás, conheço apenas por duas rápidas passagens; e que, como adulto, bem sei que não contam.
Passadas algumas décadas, vim a conhecer um pouco da região, alguns quilômetros além da mítica Ponta Grossa. Um caminho que começa na Lapa e termina em São Francisco do Sul, já em Santa Catarina; lugares muito interessantes e que não foram percebidos em meus estudos de geografia infantil. Nem pelos turistas contemporâneos. Felizmente, já que a indústria do turismo acaba sempre por superficializar e artificializar tudo. Por sorte, os lugares não turísticos ainda são maioria; mesmo com muitas cidades também desejando ser cidades turísticas, o quanto antes e o quanto mais puderem. Pensando bem, as melhores cidades talvez sejam aquelas que, humildes, nem sequer fazem planos de serem um dia cidades turísticas. Nessas viagens, o único inconveniente que percebi foi a falta de uma explicação para dar sobre o porquê de estar lá. Como explicar um gosto por cidades não turísticas?! Elas, afinal, não foram feitas para serem gostadas! Mas, é justamente essa despretenção e autenticidade que as tornam atraentes.
O caminho, que segue até a Lapa (esta sim, uma simpática cidade turística), passa por Campo do Tenente e seu tranquilo arredor; tranquilidade que deve certamente ter influenciado na escolha da região para a construção do mosteiro trapista de Nossa Senhora do Novo Mundo. Próximo dali, o belíssimo casarão Villa Anna, recentemente comprado pela prefeitura de Campo do Tenente e localizado em plena margem da rodovia PR 427. Fora isso, muitas outras e admiráveis casas e construções de madeira. Seguindo caminho mais longo e igualmente interessante: Palmeira, São Mateus do Sul (e lá, a igreja de São José), Mallet (onde fica a igreja de São Miguel Arcanjo, cuja réplica pode ser vista no Parque Tingui, em Curitiba), voltando para Rio Negro e Mafra (a minha preferida, com seus enormes casarões de madeira), já em Santa Catarina e antes de seguir para Rio Negrinho, São Bento do Sul, Joinville e São Francisco do Sul.
Nessas cidades e em seus arredores, igrejas centenárias e casas construídas no exato gosto de seus antigos moradores, com lambrequins que mais parecem longos bordados. Muitas com paredes duplas e outros requintes de construção; chegando a, como em Palmeira, toda a arquibancada do estádio de futebol ser construída em madeira. Se por um lado visitar algumas das construções mais atraentes da região (antigas fábricas desativadas, pequenos comércios ou antigos clubes, por exemplo) produz a sensação cômica de ficarmos desconfiados de estarmos depertando desconfiança (o carro, o sotaque que ainda restou de Minas...) por outro, a simpatia e curiosidade dos moradores supera a solicitude treinada de qualquer guia turístico profissional.
Ao contrário de Maringá, de onde escrevo, muitas das construções de madeira dessas cidades foram construídas no início do século XX, durante períodos de prosperidade econômica: isso explica o porquê de serem tão mais sofisticadas, comumente maiores e mais e bonitas que as da região norte do estado, onde começaram a ser construídas já em meados dos anos 40, quase em caráter provisório e no início dos projetos de colonização da Companhia Melhoramentos. Longe do que muitos podem imaginar, em função do modo como foram construídas e da madeira utilizada, são construções muito duráveis, ainda que se ressintam dos poucos cuidados que recebem.
O fato é que são casas muito originais, construídas ao gosto particular de seus moradores e não raro com indicações (as cores, os lambrequins) da região de onde vieram seus pais, avós e eles mesmos. Originais inclusive pelo fato de que essas construções uniam dois mundos: os mundos de origem (Polônia, Ucrânia, Rússia...) e o novo continente em que foram construídas; sendo aqui necessário o uso de outras madeiras, outros materiais de cobertura para os telhados, outros usos dos quintais, etc; resultando de tudo isso construções muito próprias da região sul.
Os explícitos sinais de uso e vida dessas casas são talvez bem mais visíveis e duráveis que aqueles deixados em suas versões de alvenaria, cada vez mais construídas para serem vendidas, antes mesmo de habitadas. Ao olhar de quem viveu por muitos anos em uma região onde nunca existiram casas de madeira, são construções que encantam por sua leveza, cores, acústica, detalhes esmerados da carpintaria, etc. Isso mesmo sabendo também dos inconvenientes, conforme minha esposa certa vez me explicou, nada nostálgica, sobre o frio, o calor, o barulho e a poeira das casas de madeira.
Sensíveis e hábeis observadores de tudo isso: o livro Casa eslavo-paranaense, bem como o prático Manual de conservação e adaptação de casas de madeira do Paraná, ambos de Joel Larocca Júnior. E também outros autores, igualmente interessados no assunto: o fotógrafo Nego Miranda (Igrejas de Madeira do Paraná e Paraná de Madeira); o arquiteto Key Imaguire, e mesmo o prolífico crítico literário Wilson Martins. Como a combinar com essas paisagens, outros livros, não tão raros mas pouco lidos, que descrevem os tempos originais dessa arquitetura: o brilhante Pinheiros e seu quase esquecido autor, José Cruz Medeiros; os relatos de viagem cheios de vida do incansável Robert Avé-Lallemand (que parece ter viajado quase tanto quanto o naturalista Auguste de Saint-Hilaire, também no século 19) e a excelente coletânea Pinheirais e Marinhas, onde são reunidos textos destes e outros autores.
Por fim, o porquê de ser uma arquitetura tão pouco valorizada. A especulação imobiliária, o progresso técnico das novas construções, o cansaço das gerações... Por essas e outras razões, uma arquitetura que não foi tão bem sucedida em termos de legitimação social e política, como ocorreu acontecer com a arquitetura de outras regiões. Coisa muito triste, considerando o quanto existe nessa arquitetura de madeira de engenhoso e original. Imensas distâncias e décadas de histórias, frequentemente dramáticas; histórias de desesperada luta pela sobrevivência em condições sempre difíceis e agravadas por diferenças culturais, do esforço e persistência por trás de muitas dessas construções, coletivas ou quase anônimas.
O turismo poderia ter salvado muitas das casas e outras construções que agora já não existem mais? Talvez sim, talvez não. A melhor resposta poderia ser dada por aquelas que ainda sobrevivem. Bastaria também lembrar que nenhuma dessas casas foram construídas para serem visitadas por turistas efemeramente interessados na superficialidade das coisas. Foram feitas para longas conversas em suas grandes cozinhas, para crianças em seus quartos e quintais, para guardar o cansaço dos que sempre voltavam do trabalho, ou ainda, como suas igrejas, feitas para a fé daqueles que as construíram.
Fábio Viana Ribeiro, sociólogo e professor associado da Universidade Estadual de Maringá.
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