É diante do “quem sou eu?” fundamental que o narrador da Nadja de Breton encontrará ocasião para rechaçar o adágio: ter “com quem ando” por resposta não pode senão – é sua mesmo a palavra – perturbá-lo. Ainda que se acrescesse a série de aforismos populares de mesmo teor que, sabemos bem, forjou o discurso de tantas mães, pais e avós, ou mesmo o nosso, seríamos intuitivamente tentados a concordar com o francês – se não pelas razões teóricas que oferece em seguida, ao menos no rechaço veemente: há um núcleo, uma realidade essencial, algo que me é tão próprio que de modo algum “com quem ando” seria capaz de determinar.
Metafísicas e ontologias à parte, quem investigasse o círculo de contatos do jovem Breton não descobriria o rapaz em sentido tão elevado e imperscrutável, é certo, mas diria dele tanto quanto podem dizer hoje os manuais e livros de História, as biografias e os críticos de arte – e nisto, neste plano da vida cotidiana em que grande parte do tempo circulamos, os adágios triunfarão. “Diga-me”, pois, “com quem andas e direi quem és”, e precisamente porque há profunda confluência entre nossa intimidade e a alheia, na qual se fortalecem ambas e ambas se alimentam.
Naturalmente, essa intimidade pode ser mal interpretada – ninguém o negará. Quem já experimentou a adolescência saberá dizer o quanto é possível deformar a própria intimidade segundo terceiros para tentar a aceitação de terceiros. Não obstante, intimidade e pertencimento, o desejo de ser um com outros, tudo isto é nosso, e julgá-lo negativamente sob acusações de falta de autenticidade ou originalidade é erro que compreenderia mal a natureza mesmo do homem. Não há nisto, pois, novidade nenhuma: os intelectuais se juntarão aos seus e os frequentadores de bares se juntarão aos seus; os que se emocionam com isto encontrarão outros emocionados, e os que se encolerizam ante aquilo encontrarão coléricos semelhantes.
Por que dizê-lo, então? Por que a solenidade para o que é evidente?
Não se trata, com efeito, de ver realizada a hipótese de Chesterton: a de enfim ser preciso explicar que a grama é verde. A obviedade, ao menos neste caso, todos veem; dela todos se sentem parte: não há quem lhe escape no Ocidente – e não apenas porque é natural, mas ainda mais porque não há quem escape aos ruídos do Ocidente. E, onde há ruído, há quem deseje se proteger do ruído e há quem deseje ouvir somente o ruído que lhe agrada.
Ora, aqui todo exemplo do passado provavelmente não bastaria. Se, em qualquer momento da história cujos registros temos, a formação de círculos intelectuais, artísticos e políticos modelou seu quinhão dos acontecimentos mediante rixas e uniões, radicalismos e prudências, não há ritmo de vida e de troca de informações que seja sequer comparável ao que vemos hoje. A constatação é imediata, é claro; qualquer secundarista a tem na ponta da língua. No entanto, é também definidora e vem associada, para além do desejo natural de pertencimento, ao fenômeno que fecha a trindade de obviedades determinantes: a politização e ideologização, de modo algum inéditas, de todas as esferas em que pode tocar o dedo do homem.
Deve-se, portanto, reconstruir o quadro de que só se mencionaram suas cores, suas formas e traços, sua tinta, e jamais todos combinados. Mas pode-se fazê-lo, e pelo caminho reverso: tudo, da cultura e religião ao que há de mais técnico, não ganha senão ares de posicionamento político e ideológico, e dos mais radicais; some-se a velocidade do que se produz e consome de conteúdo, a velocidade que vicia os olhos, obnubila discernimentos, adormece a razão; e o que, por outro lado, não se altera: a necessidade do pertencimento, do sentir-se aceito sob qualquer estandarte comum e maior. Está pintado o retrato que não se marcaria pelos azuis vivos de Giotto, mas pelas sombras dum Caravaggio.
Uma vez que a vaidade de tudo se vale, agrada-lhe agravar tudo, ser a tela em que o retrato se pinta e ela, sob as cores, formas, traços e tinta, se esconde. Sim, a vaidade – e, à acusação de que voltaríamos assim à linguagem moralizante do passado, deixamos a realidade se impor naquilo que tem de mais romântico: a busca de formação e conhecimento por cabeças genuinamente ávidas, muitas vezes brilhantíssimas, embebidas da ambição juvenil da influência nos rumos públicos e naqueles círculos que lhe poderiam conferir – a seus olhos, ao menos – alguma estatura.
A fresta é mesmo essa. Quem propuser a essa mente sedenta uma vida intelectual distante o suficiente para lhe parecer pomposa e próxima o bastante para que ela seja capaz de recolher alguns de seus fragmentos contará com a vaidade como motor. Dir-lhe-ão que há algo que os outros não veem, que a verdade lhes escapa, e ei-lo ali, certo de que partilha da iluminação restrita aos poucos escolhidos: pertence a essa casta, sua superioridade é indiscutível, e toda e qualquer coisa, todo e qualquer raciocínio, toda e qualquer produção que vier a derivar dessa matriz insuflará ainda mais os peitos, empinará ainda mais os narizes.
É evidente: todo esse ar de superioridade só pode conservar-se porque se é superior a algo ou alguém. Toda a coesão dos iluminados perdura na oposição. E, se tudo goza de matiz político e se tudo responde a uma velocidade cada vez maior de boas-novas e frustrações, o grau de tensão coesiva será sempre elevado. Eis por que há todo dia um novo inimigo, sempre uma nova batalha a travar e nunca uma derrota a reconhecer. Somente a fabricação de bodes expiatórios em ritmo semelhante ao da circulação de informações que podem cindir a coesão é capaz de unir e manter a sensação de superioridade. Chega-se – vemo-lo em toda parte e não surpreende – ao ponto em que as posições são tomadas antes de que seja possível sequer justificá-las, sem que importe de que esfera do conhecimento se fala. Primeiro, o lugar; depois, e muito depois, as diretrizes que conduzem a ele.
Contemplar o tenebroso panorama, no entanto, tem seus riscos: julgar-se acima dessa dinâmica talvez seja maior vitória da vaidade do que qualquer outra, e na sensação de não se ter imaculado por tamanha mesquinhez reside a empáfia tanto quanto alhures – ou mesmo mais: do alto cume a que poucos decorosos teriam chegado, os bodes expiatórios possíveis parecem mais numerosos. Ser, com os seus, melhor do que os outros é gozoso, e com que velocidade não se podem fabricar gente inferior?
À pergunta “Aonde, assim, se vai parar?” não há qualquer resposta possível, hoje, senão a de que tudo perdurará em ritmo de tal maneira intenso que a dinâmica acelerada não se distinguirá mais do colapso geral da comunidade. No entanto, talvez seja o caso, muito mais propositivo, de questionar também: “Onde, assim, é possível parar?”. Que espaço o permitiria?
Porque seria anti-humana, e, em geral, já inviável, a proposta de um isolamento pleno não pode ser senão descartada como devaneio infantil. Nesse caso, o homem não estaria protegido de si mesmo – como fazê-lo? – e ainda feriria sua natureza gregária mais arraigada. Por outro lado, é possível lançar mão, como argumento, da possibilidade de um ócio especulativo, do exercício da razão como prática contemplativa que se pusesse acima das ninharias – assim o parecerá a seus defensores – que fundamentam a dinâmica da polarização social.
No fundo, em quase nada isso se diferenciaria da posição infantil do isolamento; além disso, parece assaz suscetível a ser paulatinamente sugado pela dinâmica mesma a que se opõe e que recorre igualmente a especulações e razões mil. De todo modo, é preciso encontrar nisso uma porta: a contemplação como possibilidade de fuga é real, mas talvez não no espaço da especulação.
Já é célebre o que em 1970, por ocasião da recepção do Prêmio Nobel, disse Alexander Soljenítsin a respeito da peculiaridade da beleza e da condição da arte. Gregory Wolfe retomou-o logo no princípio de seu Beauty Will Save the World, mas pode-se aqui ser igualmente generoso na reprodução, retomada da edição brasileira da obra (A beleza salvará o mundo, com tradução de Marcelo Gonzaga de Oliveira, Vide Editorial, 2015): “a convicção presente em uma genuína obra de arte é absolutamente indisputável, e consegue domar até mesmo o coração mais resistente. Alguém pode criar um discurso político, uma polêmica jornalística assertiva, um programa para organizar a sociedade, um sistema filosófico, de tal forma que qualquer um deles pareça coeso, bem estruturado, mas cada um pode ser construído sobre um erro, uma mentira [...]. Uma obra de arte, por outro lado, carrega em si mesma sua própria confirmação”.
De fato, ao menos no plano de sua experiência, não se pode discutir contra a beleza. É possível que sua teorização e sistematização deem ensejo à formação de círculos ideológicos e mecanismos expiatórios como os círculos politizados que correm, mas de modo algum a sua experiência. A experiência da arte, essa experiência estética, é por si irrefutável. “Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen”: a primeira frase da Paixão Segundo São Mateus arrebata-nos e “só”. Toma-nos o mar de vozes – e furta-se ao jogo retórico. “A autêntica poesia é capaz de comunicar antes de ser compreendida”, resumiu assim T. S. Eliot.
Todavia, há, a minar os jogos ideológicos que hoje predominam, mais na experiência estética do que a capacidade de isolar-se das batalhas argumentativas. Precisamente por ser experiência, trata-se em primeiro lugar de atitude pessoal, de um “tu” a “tu”. A depender da profundidade, beira mesmo o inefável: quanto melhor a obra, menos se terá a convicção de que é possível comunicar a experiência a outrem sem prejuízo incalculável: o número de monografias sobre peças canonizadas são prova disso, e da natureza dessa experiência depreendem-se, pois, dois outros pontos cruciais.
O primeiro deles vem da própria postura de receptividade de quem se vê imerso ali. Não sou eu quem falo: é a mim que há algo a ser dito – ou melhor, é para mim o impacto. Os meus são os ouvidos que, na medida de suas limitações, escutarão alguma coisa. E, por isso, a atitude essencial da contemplação estética não pode ser outra: o silêncio.
Depois, ocorre que o silêncio só tem de ser exigido por algo que se impõe. “A beleza será convulsiva ou não será”, disse o velho Breton pela boca do narrador da mesma Nadja. Sim: diante da beleza, somos mesmo a pequena fração do universo que somos e da qual esquecemos. Trata-se de um chamado e uma humilhação – e, por isso mesmo, de algo que nos atende, mas vai muitíssimo além.
A tela deste segundo quadro, portanto, tem outra natureza. Todavia, se ambos já foram pintados, deve-se cotejar um e outro e garantir que o salto da situação ideológica à experiência estética da arte não está de modo algum deslocado e que faz sentido propor a segunda. Com efeito, se de um lado há a ideologização completa de todos os aspectos da vida, o debate infindável como forma de demarcação de um recorte coletivo, do outro não há debate porque só existe a experiência que se confirma a si mesma, e a respeito da qual não pode haver discussão – a experiência que cala todo e qualquer possível muxoxo polarizador. Em realidade, já não se pode sequer falar em grupos: experiência da beleza artística é experiência individual, impacto sob as medidas do próprio espírito (e não da boa obra, que sempre pode mais).
Além disso, porque esse impacto só se pode sentir no silêncio interior, contra o ruído dos tempos a experiência estética oferece o eficaz antídoto da abertura receptiva, a qual não está previamente ocupada com possíveis revides, com argumentações e contra-argumentos. Tudo o que lhe cabe é sentir o peso que cai sobre os ombros do homem e que é muito maior do que suas forças; este homem não precisa sentir-se parte mediante a diminuição alheia porque já se sabe incorrigivelmente pequeno e frágil: a beleza revelou-o assim, como de fato é.
Hugo Langone é poeta e doutor em Teoria Literária, autor dos livros Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito, A descida do monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura pagã.
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