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A ministra da Cultura, Margareth Menezes, o presidente Lula (PT) e a primeira-dama, Janja.
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, o presidente Lula (PT) e a primeira-dama, Janja.| Foto: Ricardo Stuckert / PR

Dois eventos recentes me chamaram a atenção: festejado pela esquerda, Chico Buarque comemora seus 80 anos no conforto de Paris enquanto Anitta esbraveja contra o Rock in Rio e explica que teria sido pressionada a se posicionar contra Bolsonaro. Não quero questionar aqui o talento ou o posicionamento ético-político de um ou de outro. Esses fatos mostram com clareza que, quanto mais o país se polariza, mais evidentes ficam os vínculos entre a arte, o dinheiro e o poder.

Millôr Fernandes já resumiu em sua genialidade: “Desconfio de qualquer idealista que lucra com seu ideal”. Enquanto para uns a arte é simplesmente a representação do que é belo, para outros a arte teria um poder revolucionário, influenciando sua época. A arte pode questionar estruturas morais e autoritárias, apelando politicamente aos indivíduos para sonharem com um mundo mais justo, qualquer que seja sua forma.

Cabe a pergunta: a abertura política nas décadas de 70 e 80, e o consequente fim da ditadura militar, acabou com a música de protesto no Brasil?

É impossível refletir sobre a história da música brasileira sem lembrar a época dos festivais da canção na década de 60. Apresentava-se a Bossa Nova, a Jovem Guarda, enquanto a MPB se consolidava como “música de protesto”, frequentemente criticando a ditadura militar da época. Nomes como Gilberto Gil, Caetano, Chico e Milton Nascimento foram lançados e alguns até vaiados pelos festivais. A plateia, formada em sua maioria por estudantes, exigia um canal para protestar politicamente.

Vaiaram Caetano Veloso quando emitiu acordes dissonantes dizendo que “é proibido proibir”, e vaiaram Chico Buarque quando viram que a sua música vencedora “Sabiá” era sutil e florida demais com relação ao “Caminhando e Cantando”, do subversivo Vandré. Cabe a pergunta: a abertura política nas décadas de 70 e 80, e o consequente fim da ditadura militar, acabou com a música de protesto no Brasil? Se hoje temos um governo de “esquerda” e naquela época tínhamos um governo de “direita”, poderíamos dizer que o protesto teria cumprido seu objetivo?  Será que o Brasil ficou melhor socialmente?  Ou apenas mudaram os reis e os amigos do rei?

Uma rápida análise dos dados socioeconômicos no Brasil mostra que, entre o “Apesar de você”, música de protesto de Chico Buarque censurada em 1971, e Anitta cantando “todo mundo quer meu bumbum”, mais de 50 anos depois, o país não parece ter feito grandes avanços socioeconômicos ou culturais.

Gostem ou não de Chico ou de Anitta, ambos são ricos e famosos, talvez por expressarem em música o “zeitgeist”, o espírito de sua época. Qual o zeitgeist de hoje?  Em termos práticos, vemos que o governo Lula aprovou a captação recorde de R$ 16,3 bilhões para mais de 10.000 projetos via Lei Rouanet em 2023, segundo dados do Ministério da Cultura. Até que ponto isso irá contribuir para nossa cultura?

A história traz vários exemplos sobre as complexas relações entre arte e poder ao longo do tempo. A arte medieval refletia o poder da Igreja na época. A arte renascentista refletia em grande parte o poder absoluto das monarquias e o poder econômico dos mecenas que podiam financiar obras de arte. Inspirado pelas fracassadas revoluções sociais de 1848 na Alemanha, o compositor Richard Wagner escreveu um texto clássico Arte e Revolução. Quase um século depois, acabou sendo escolhido como herói nacional dos nazistas, mas não por causa de seu texto revolucionário.    

A Morte de Marat, pintada por Jacques-Louis David em 1793, retrata Jean-Paul Marat deitado como um mártir na banheira em que foi assassinado pela monarquista Charlotte Corday. Esta pintura transformou o radical Marat em herói, apesar de ser considerado por muitos um revolucionário extremista responsável por contribuir para o clima político violento na França de 1793.

A história traz vários exemplos sobre as complexas relações entre arte e poder ao longo do tempo

Outro exemplo igualmente famoso é A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugéne Delacroix, que mostra a liberdade, como uma deusa, portando a bandeira francesa e conduzindo os camponeses das classes trabalhadoras oprimidas. Todo mundo pensa que se trata da Revolução Francesa de 1789. Na realidade, o episódio retratado, a revolução de 1830, depôs o rei Charles X da dinastia Bourbon e colocou em seu lugar o rei Louis Philippe, da dinastia Orleans. Por sinal, foi esse quem promoveu a conquista da Algéria em 1830. A burguesia se beneficiou. Mas enquanto Cazuza cantava “a burguesia fede”, em 1989, os algerianos já estavam invadindo Paris de forma bem mais sutil – mas isso já é outra história.

O nazismo de Hitler, o fascismo de Mussolini e o comunismo de Stalin promoveram a chamada “estética totalitária” na qual a produção artística austera servia principalmente como veículo de propaganda para o Estado – que financiava tudo, claro. Voltando ao Brasil de hoje, vemos que, segundo levantamento publicado pelo jornal digital Poder 360 em abril deste ano, “os pagamentos de publicidade da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência) e dos ministérios para os canais de TV do Grupo Globo e afiliadas avançaram 60% em 2023 no 1º ano do atual governo – passando de R$ 89 milhões em 2022 (último ano de Jair Bolsonaro) para R$ 142 milhões em 2023”.

Em seu ensaio Por que escrevo, George Orwell, autor do famoso livro Animal Farm (A Revolução dos Bichos) satirizando o socialismo, generalizou: “Todos os jornais importantes vivem de seus anúncios, e os anunciantes exercem uma censura indireta sobre as notícias”. Andy Wahrol, famoso por sua pop art, resumiu com grande cara de pau e honestidade: “Ganhar dinheiro é a mais fascinante forma de arte”.

Na língua portuguesa, a palavra “promíscuo” pode ter dois significados: 1) confusão de elementos diferentes, embaralhados, misturados; 2)  degradação moral, falta de discernimento na escolha de parceiros. A história parece confirmar que as duas definições se aplicam na relação promíscua entre arte, dinheiro e poder em todas as épocas e lugares. Tanto em Honório Gurgel como em Paris. 

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior em inovação, gestão pública e desenvolvimento urbano da ONU em Nova York.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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