A necessidade de se expressar por meio da arte é inerente ao ser humano, seja ela como for, a fim de despertar e estimular níveis de consciência e causar efeitos. Desde a pré-história, por meio de pinturas rupestres, o homem já representava a realidade sob sua percepção. Mais tarde, de acordo com o contexto histórico, as expressões artísticas foram espalhando-se pelos centros urbanos através de música, teatro, dança – sempre a partir de um senso estético, com artes pautadas em críticas sociais, políticas e econômicas.
Originalmente chamada de Street Art, a "arte visual de rua" ou "arte urbana" é uma forma de expressão artística que se destacou na década de 1970, nos Estados Unidos, ao migrar de lugares tradicionalmente destinados às manifestações artísticas, como teatro, cinemas, bibliotecas e museus, para o cotidiano das ruas. Trata-se de uma linguagem expressiva autoral, ativista e polêmica, que surge para livremente opinar e alterar o entorno das cidades nos mais diferentes suportes.
Esse tipo de arte chegou ao Brasil, nos anos 1980, por meio do grafite nas paredes da cidade de São Paulo – curiosamente, durante a ditadura militar, um período de repressão política e artística. Era, na época, um grito silencioso de uma geração cuja liberdade de expressão havia sido cassada pelo regime, quando o grafite era considerado crime pela legislação brasileira.
Nas obras de Alex Vallauri, artista etíope radicado no Brasil e responsável pelos primeiros grafites em espaço público da capital paulista, era possível entender o lado político da criação: Boca com Alfinete, em 1973, fazia uma referência clara à censura. Mais tarde, sua obra ocupou muros da capital em prol das Diretas Já.
Ainda que o trabalho do artista de rua encontre certa resistência, é fundamental destacar sua relevância para a sociedade
Do italiano grafito, que significa “rabisco”, essa criação é proveniente da cultura hip-hop nova-iorquina, como uma forma de expressão em consonância com as experiências cotidianas de gangues do Bronx, no norte da cidade. O grafite, que preenchia os vagões do metrô e os muros das regiões mais pobres, manifestava o protesto das minorias sobre os problemas sociais que enfrentavam.
Essa dialética socioespacial como importante instrumento de representação da cidade revelou talentos ocultos, transformou locais históricos e humanizou ambientes urbanos, a exemplo do próprio Muro de Berlim. Símbolo da Guerra Fria, o local virou hoje o East Side Gallery, uma grande galeria de arte a céu aberto com grafites que retratam tanto as dores da divisão das Alemanhas quanto questões políticas e sociais da atualidade.
De Wynwood Walls, em Miami; Le M.U.R, em Paris; até o próprio Beco do Batman, em São Paulo, os espaços destinados às obras de grafiteiros do mundo inteiro comprovam o reconhecimento dessa criação como ferramenta de transformação social.
Ainda que o trabalho do artista de rua encontre certa resistência, é fundamental destacar sua relevância para a sociedade. O britânico Bansky, por exemplo, deixa sua marca ao redor do mundo utilizando a técnica do estêncil, fazendo fortes críticas políticas, à sociedade e à guerra, sempre de forma irônica e sem revelar sua identidade. Suas obras estão espalhadas por São Francisco, Londres, Los Angeles, Nova York e até no muro que separa Israel e Palestina. A instituição Keep Britain Tidy (“Mantenha a Grã-Bretanha arrumada”), do Reino Unido, considerava Banksy um vândalo, o que pautou um debate mundial sobre a classificação do grafite como arte ou mero vandalismo. Vale lembrar que a obra Menina com balão, do mesmo artista, foi arrematada por 1 milhão de libras e se autodestruiu após ser vendida.
Leia também: A quem interessa uma cidade sem arte nas ruas? (artigo de Marcos Torres, publicado em 27 de janeiro de 2019)
Há uma “independência assombrosa” da arte de rua em relação a hierarquias críticas e a circuitos comerciais – independência mantida mesmo pelos veteranos que, descobertos nas ruas, já são estudados e codificados pela academia e têm seus trabalhos expostos em galerias e museus pelo mundo, dos quais, no Brasil, existem pelo menos 50 de primeiríssima qualidade.
No Brasil, assim como em muitos outros países, o assunto ainda é polêmico. Conforme o artigo 5º da Constituição, todo cidadão é livre para se manifestar artisticamente. Em 2011, o Decreto 52.504 regulamentou o exercício artístico nas vias públicas da cidade de São Paulo, e a Lei 10.277/11, em Belo Horizonte, regulamentou essas manifestações no mesmo ano.
Em São Paulo, berço da street art brasileira, a cultura do grafite é muito forte. Obras da dupla Os Gêmeos e dos paulistanos Cranio, Kobra e Speto preenchem muros e edifícios da capital.
Ao longo do tempo, os instrumentos e os suportes da arte visual de rua foram ampliados, especialmente nas últimas décadas. Hoje, folhas de papel, lápis e tintas não são as únicas ferramentas para a produção de arte urbana. Essas expressões têm evoluído de tal forma que softwares de design permitem que desenhos sejam criados por meio de programas de computador, a web art, antes de irem para as ruas. Obras à mão são, hoje, apenas uma forma da expressão artística, à qual se somam projeções holográficas, videoarte, animações, colagens e instalações artísticas, entre outros.
Como um todo, essa ou qualquer outra arte não necessita de legitimação ou reconhecimento de instituições consolidadas para existir. Independentemente de qualquer categorização, a arte visual de rua tem sua força, alcança um vasto público e, sobretudo, com ou sem apelo estético, tem seu objetivo alcançado: transmite a mensagem e suaviza a monotonia dos percursos habituais do dia a dia urbano.
Maria Bonomi é artista plástica, doutora em Poéticas Visuais e a gravadora brasileira mais premiada nacional e internacionalmente. É vice-presidente do Conselho Administrativo da Fundação Bunge, que organiza o Prêmio Fundação Bunge, que neste ano também incluirá a arte visual de rua entre as áreas homenageadas.