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Virgílio inicia a Eneida cantando as armas e o varão de sua trama. A arma de um cartunista é a caneta. As armas dos terroristas que mataram cartunistas do jornal Charlie Hebdo foram fuzis e lançadores de granada. Referindo-se a seus instrumentos apenas como "armas", alguns são tentados a crer que ambos trabalhem com a mesma coisa.

Após a barbárie em Paris, pulularam as típicas análises "sociais" que grassam como ervas daninhas em cemitérios. Invariavelmente, abusam de substantivos coletivos e abstratos que, na boca de acadêmicos, são mais concretos do que qualquer realidade fora de suas torres de marfim.

Fala-se em intolerância, fanatismo religioso, xenofobia, opressão. Dissolvidos em palavrório pomposo, os fatos se tornam tão abstratos quanto números em uma equação, que podem ser substituídos, manipulados e trocarem de posição até o resultado pretendido.

O que aconteceu foi mais um atentado terrorista islâmico. Não há notícias sobre atentados terroristas cristãos, judeus; todavia, há atentados islâmicos, hindus, budistas – estes últimos, ironicamente, contra muçulmanos, como os de Sayadaw Wirathu, líder budista que se autointitula "o Bin Laden birmanês".

Contudo, basta haver um atentado islâmico, em que novamente os assassinos gritam "Allāhu Akbar" ("Alá é o maior"), para que a palpitaria declare, antes de mais nada, que o atentado nada tem a ver com o islamismo – até Barack Obama afirmou que o Estado Islâmico não tem nada a ver com nenhuma religião, "muito menos" com... o islamismo. Será que se houvesse um atentado de algum padre ou rabino a mídia faria o mesmo senão?

Mas a mania da abstração faz crer que gritar "intolerância religiosa" pode ombrear no mesmo patamar a idosa com medo dos discos do Black Sabbath e os insanos de Paris, o Boko Haram, o Hamas, o Estado Islâmico. Que analisar sob o prisma da "intolerância" iguala os fanáticos que querem impor a sharia na Europa a quem não quer – e, claro, comparar estes últimos aos nazistas, invocando as próximas palavras mágicas, "xenofobia" e "extrema-direita".

Quando começamos a acreditar nas palavras, e não nas coisas que elas tentam designar, as palavras tornam-se armas que apenas incluem inimigos dentro de um termo que seja considerado negativo – não por seu significado, mas pela carga psicológica que ele evoca, esvaziado de sentido. Basta afirmar que preconceito mata, e chamar qualquer um que rejeite mortes de "preconceituoso". Como na alquimia, palavras mágicas criam a realidade – ao menos para quem vive de ilusões semânticas.

Para a magia ser completa, usa-se termos com potencial "sociológico". Agora tudo é "islamofobia", até a mera recusa a aceitar a sharia ou fazer coisas que "ofendam" muçulmanos – o que jogaria quase o Ocidente inteiro no lixo, do bacon e de Salman Rushdie ao feminismo. "Fobia" implica irracionalidade, o que nem sempre é o caso. Já para os judeus, fica-se com "antissemitismo" ou mesmo o eufemismo "antissionismo", uma posição supostamente "racional".

Enxergando apenas o que querem através do cabresto linguístico, veem uma revista de esquerda, antirreligiosa, publicando várias charges sobre várias religiões. Apenas muçulmanos fazem ataques à revista – um deles, com 12 mortes. E a culpa é do "fanatismo religioso" e da "xenofobia" europeia – majoritariamente cristã, que não sabe "tolerar" os muçulmanos. Flavio Morgenstern é analista político, tradutor e palestrante

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