Há uma peculiaridade no idioma grego clássico que pode nos ajudar a refletir a respeito não apenas do surgimento da democracia, mas do seu próprio modus operandi: é impossível compreender o que alguém pretende dizer sem ouvir até o fim o que será dito. A sintaxe grega não permite induções do tipo: "ah, tá, já entendi aonde você quer chegar!", tão típicas do nosso idioma e tão expressivas em nossas disputas intelectuais e políticas. Em grego, ou você escuta até o fim ou vira as costas e deixa seu interlocutor falando sozinho, sem saber o que de fato ele queria lhe comunicar.

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A verdade é que, historicamente, a democracia não surgiu como um valor em si mesmo, mas apenas como um tipo de governo "no qual a ‘maioria’ detém o poder", isto é, em que os homens que eram considerados livres detinham a possibilidade de resolver assuntos da cidade por meio do uso da palavra persuasiva (peithein) que se justifica (logon didonai) em uma discussão (dialegesthai) em que há claramente disputa (agon) de opiniões (doxa) e não mediante o uso arbitrário da autoridade do berro ou da espada.

Percebe-se que ela tem seus riscos e que, portanto, não é perfeita – foi duramente criticada por Platão, sobretudo por ter sido a principal responsável pela morte de Sócrates. Entretanto, a democracia originou-se em oposição à aristocracia ou em oposição às antigas monarquias guerreiras, caracterizando-se, assim, principalmente por codificar em escrita as suas leis; a essas, sim, portanto, atribuía-se um valor em si, enquanto a democracia propriamente dita era tão somente o meio pelo qual se estabeleciam as leis.

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Duas eram as condições necessárias para a consolidação da democracia em Atenas, a saber: a isegoria e a parresia. A primeira marcava a fundamental característica de igualdade no direito à palavra: todo homem livre tinha o direito de manifestar-se na ekklesia, isto é, na assembleia. A segunda condição definia fundamentalmente a possibilidade concreta de dizer livremente aquilo que se quer dizer, pois era o que marcava precisamente a condição e a consolidação do estatuto de um homem se tornar cidadão.

Voltemos à democracia brasileira: a verdade é que, historicamente, apenas brincamos de democracia. A nossa, comparada à tradição ocidental cujo pilar é a Grécia, goste-se ou não, tem alguns meses de vida; é uma criança que ainda nem aprendeu a falar – e, pelo jeito, a escutar. E o problema, mais grave ainda para quem faz da democracia "um valor em si", é que no Brasil não passamos pelo processo da Aufklärung, tão caro à consolidação do Estado Democrático de Direito no Ocidente europeu, cuja finalidade foi, em última instância, tentar resolver conflitos de natureza religiosa emergentes da Reforma, da Contrarreforma, da culturas árabe e judaica etc.

Toda essa polêmica sobre o deputado Feliciano e os "direitos humanos das minorias" é uma consequência direta dessa falta de cristalização da tradição ocidental nas nossas relações culturais, em geral, e nas relações políticas, em particular. Mesmo as supostas conquistas dos movimentos de 68 deixam a desejar aqui no Brasil, já que sempre vivemos com a raspa do tacho do que há de pior no mundo em termos de fantasias ideológicas. Em suma, eis o drama do formalismo institucional diante da inaptidão de um ethos cuja expressão máxima se dá na simplicidade do senso comum – pois, sejamos francos, toda essa polêmica se resolveria com um gesto absolutamente banal: deixar o interlocutor terminar de falar enquanto atentamente ouvimos e nos preparamos pra discordar. Lembremo-nos de que aqueles que berram, isto é, balbuciam gritos, foram qualificados pelo grego de "bárbaros".

Francisco Razzo é mestrando em Filosofia pela PUC-SP.