O trânsito centrado nos automóveis particulares deve ceder lugar à coletividade. Formas ditas alternativas de deslocamento devem estar disponíveis de fato
Há no ar um certo tipo de "eletricidade", uma tensão indicativa de mudanças, que mais cedo ou mais tarde teremos de encarar de forma profunda para chegar à raiz dos problemas. O trânsito centrado nos automóveis particulares deve ceder lugar à coletividade. Formas ditas alternativas de deslocamento devem estar disponíveis de fato. Lembremos que o acesso à cidade é pressuposto de toda cultura e desenvolvimento social. Se esse é restrito ou privilegia somente aqueles de maior renda, podemos estar certos da continuidade de todos os padrões de desigualdade e injustiça. A democracia, as assembleias verdadeiras funcionam sempre na conversa, no diálogo e no embate entre cidadãos. Para isso é necessário olhar nos olhos.
Nos pós-modernos tempos em que vivemos, os olhos estão atrás dos vidros escuros e toda tentativa de conversa se torna um grito ríspido, uma buzinada, um gesto de ofensa. Nossa incapacidade política é traduzida na dificuldade de harmonia que vivenciamos no trânsito.
Em 1959, Os Situacionistas afirmaram que basear o urbanismo na insensatez do automóvel é prova de estupidez falta de clareza de pensamento. Disse Guy Debord: "Um planejamento urbano sensato não iria nem suprimir o carro e tampouco permitir que se torne um tema central".
A percepção de quem vive na cidade de Curitiba é, apesar da propaganda oficial, a de que quem manda aqui é sim o carro, suas necessidades são imperativas. O escoamento precisa fluir. Que venham abaixo as pracinhas, o silêncio e os cantos ainda tranquilos dos bairros. As ruas Tefé, Raquel Prado e João Guilherme Guimarães perderam não apenas seus maiores encantos, mas tornaram-se vias rápidas e perigosas.
Temos a população mais motorizada do Brasil e uma parcela sempre crescente dos cidadãos tendo acesso à compra de automóveis. Mas o urbanismo não deve prever esse grave problema e propor formas ousadas para solucioná-lo? A ênfase dada ao carro necessita de restrições. Não tenhamos a pretensão de haver conquistado verdades absolutas ou certezas irredutíveis no que diz respeito a nossa falta de imaginação em relação à cidade. Mais do que simplesmente atender aos imperativos econômicos das indústrias e da tecnocracia , o urbanismo deve se basear nas dimensões humanas e levar em conta a fragilidade do corpo humano.
A "eletricidade" que mencionamos tem a ver com sinalizações positivas por parte do poder público ciclofaixa na Avenida Cândido de Abreu, ciclovia na Visconde de Guarapuava, ciclovia na Avenida das Torres, bicicletários e paraciclos por toda a cidade são promessas para um breve futuro. Que fiquem registradas, pois serão devidamente cobradas.
Sobretudo, as prometidas ações afirmativas de ciclomobilidade devem ter em conta aspectos mais amplos de toda simbologia que a bicicleta representa enquanto meio de transporte, enquanto descoberta do próprio corpo, enquanto liberdade e autonomia do sujeito. Favorecer e estimular o uso da bicicleta é proporcionar esse tipo de transporte a um número sempre maior de pessoas. Por que não tornar a bicicleta corriqueira, presente?
Apenas reivindicamos que a bicicleta não seja mais esquecida. Que seja reconhecida, respeitada e tenha o seu uso difundido pelas instituições públicas. Por que não investir pelo menos o orçamento previsto em lei para estrutura cicloviária na cidade? Por que não inserir oficialmente, com empenho e efetividade, a bicicleta e os ciclistas nas preocupações cotidianas dos agentes da Urbs e Diretran?
Nas últimas semanas, três usuários da bicicleta perderam a vida em Curitiba. Talvez tenham sido mais. E nos últimos anos não podemos listar avanços significativos na execução de obras simples ou complexas de ciclomobilidade na cidade. Causa e efeito ou mera coincidência?
Goura Nataraj, filósofo, é coordenador-geral da Associação de Ciclistas do Alto Iguaçu.