A América Latina vive um momento definitivo no que se refere à tolerância da legislação com as drogas e seus usuários. O primeiro sinal de que é hora de o continente pensar sobre a questão foi a criação da Comissão Global de Política sobre Drogas, da qual fazem parte o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, além de ex-presidentes do México e Colômbia. O segundo sinal foi dado pelo presidente uruguaio José Mujica, que legalizou a produção e distribuição de maconha no país, como forma de reduzir a violência associada ao narcotráfico. Atenta, a ONU mostrou-se contrária à postura de Mujica e alertou-o de que a legalização uruguaia significa uma violação da Convenção das Nações Unidas sobre Drogas. O terceiro sinal foi o da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), que entregou à Câmara dos Deputados um anteprojeto de lei que propõe a descriminalização do uso de drogas. O grupo pede uma legislação "mais justa e eficaz".
Temos uma democracia madura o suficiente para encarar a questão com a serenidade que ela exige. A maioria para não dizer a totalidade das discussões acerca da legalização das drogas tange primordialmente a questão da violência que o tráfico de entorpecentes acarreta, mas relega a segundo plano o importante viés da saúde pública. As contrapartidas sugeridas costumam ser reforço no trabalho preventivo e de informação ao público sobre os males das drogas, além de ampliação na oferta de tratamento. A pergunta que fica é: por que isso já não é feito hoje, mesmo sem legalização?
Existem três possíveis caminhos, adotados em diferentes lugares do mundo: a legalização da maconha, ou seja, sua venda legal supervisionada pelo Estado; o segundo é a descriminalização, em que portar ou plantar maconha não é crime, mas é passível de pena; o terceiro caminho é a não penalização: portar ou plantar maconha deixaria de ser crime, não sendo mais passível de pena. Qual destas políticas seria a mais recomendada para o Brasil?
O plantio é descriminalizado em países desenvolvidos, todos com menos de 20 milhões de habitantes, como Bélgica, Portugal, Holanda e Suíça. Vivemos em um país de quase 200 milhões de habitantes, de dimensões continentais, incapaz até mesmo de supervisionar a venda de bebida alcoólica e cigarro a menores. Como esse mesmo Estado supervisionaria o plantio doméstico? Como controlar a quantidade plantada por um único indivíduo? O consumo doméstico acontecerá na frente de crianças?
No Brasil, já vigora um regime de descriminalização do porte de maconha, mas quem decide se o portador é usuário ou traficante são o policial e o juiz, em primeira e segunda instâncias, respectivamente. O máximo que se pode defender e, ainda assim, depois de muito debate é que a diferenciação entre usuário e traficante possa ser definida a partir de um critério concreto: a quantidade de droga portada, e não a cor, classe social ou sexo. Outro ponto: a nova Lei de Drogas compreende não apenas a maconha, mas todas as drogas. Não há legislação capaz de abranger maconha e cocaína. Elas não são "farinha do mesmo saco". O risco de dependência da maconha é bem menor que o da cocaína, assim como a probabilidade de comportamentos violentos decorrentes do uso da droga.
Quem trabalha com saúde pública no Brasil sabe que a realidade não é animadora: ainda há muito a se fazer para prevenir a iniciação de crianças e adolescentes no uso de álcool e drogas, o consumo de entorpecentes está em curva ascendente, o Programa Nacional de Drogas é incipiente, a oferta de tratamento para usuários de drogas não chega nem perto do necessário, e vivemos uma trágica epidemia do uso de crack. Espera-se responsabilidade e bom senso dos legisladores que têm, agora, o desafio de levar o debate adiante.
Analice Gigliotti, psiquiatra, é diretora médica do Espaço Clif.
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