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A disputa nas urnas se aproxima e o eleitorado “cristão conservador” tem peso decisivo. Analisado de perto, porém, há nele mais elementos revolucionários do que se costuma imaginar.
Em que pese a louvável unidade política dos que se identificam como cristãos em torno de pautas que defendem a lei natural contra as arbitrariedades do positivismo jurídico (aborto, ativismo LGBT, ideologia de gênero etc.), os valores cristãos jamais voltarão a regular a política nacional sem que se lancem honestas luzes sobre o difuso amálgama de cariz religioso que – felizmente, diga-se – tem servido de barreira contra o que há de mais escravizante, niilista e socialmente dissolvente em circulação em se tratando de ideologias.
Acerta quem identifica o consórcio entre a indigência intelectual identitária e o financismo global como o motor revolucionário atual da auto-aniquilação humana, da discórdia social e do controle político, mas equivoca-se quem julga que o ecumênico “conservadorismo cristão”, bastante em voga atualmente, contenha os antídotos definitivos contra os inimigos de Deus, da pátria e da humanidade.
Por mais que a diminuam os naturalistas instrumentos do academicismo moderno, a fé na presença real de Cristo na Eucaristia – corpo, sangue, alma e divindade – é o fundamento da cristandade, o eixo da civilização.
O Brasil nasceu católico, seu ato fundacional foi uma missa – celebrada por frei Henrique Soares de Coimbra em 26 de abril de 1500. E o que é a missa? A palavra que dá nome ao culto divino encontra-se na expressão de encerramento do rito latino tradicional: “Ite, missa est” – que se pode traduzir como “Ide, [a oblação] foi enviada”. E o que (ou quem) é a oblação? É o próprio Cristo ressuscitado, oferecido pelo sacerdote a Deus, de modo incruento, sob as aparências de pão e de vinho no sacramento da Eucaristia. A missa é, portanto, o envio a Deus Pai do sacrifício do Deus Filho – sob a assistência do Deus Espírito Santo.
A fé católica ensina que o sacerdote devidamente ordenado, ao pronunciar com a intenção da Igreja a oração consacratória sobre aquelas duas espécies no altar, realiza o milagre da transubstanciação, em que as substâncias do pão e do vinho (inacessíveis aos sentidos) transmutam-se em Corpo e Sangue de Cristo, embora os acidentes (aparência sensível) dessas espécies permaneçam os mesmos (como no homem que acaba de morrer, em que a substância de pessoa dá lugar à de cadáver embora a aparência permaneça a mesma).
Assim é que o mesmo sacrifício de Paixão e morte na cruz, em que o Deus-homem permitiu-se imolar para, vencendo o pecado e a morte na Ressurreição, redimir o gênero humano, é misticamente atualizado em cada missa. Portanto, para além de mera assembleia de fiéis reunidos em pregação e louvor, a missa católica é a renovação sobrenatural do Calvário, em que o mesmo Cristo se oferece como sacrifício maximamente agradável a Deus e como alimento espiritual aos fiéis. É o próprio Cristo quem diz: "Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo." (Jo 6, 51)
Mais adiante, face à perplexidade dos judeus sobre como aquele homem poderia dar-lhes de comer sua própria carne, Jesus é ainda mais explícito: "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue, verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele." (Jo 6, 54-56)
Muitos discípulos deixaram de seguir Jesus por não suportarem tal pregação. Mais tarde, na Última Ceia, Nosso Senhor instituiria o sacerdócio católico e a Eucaristia, definindo o modo pelo qual, até o fim dos tempos, haveria de perpetuar Sua presença real entre nós e dar-nos de comer Sua carne e beber o Seu sangue: "Durante a refeição, Jesus tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: ‘Tomai e comei, isto é meu corpo’. Tomou depois o cálice, rendeu graças e deu-lho, dizendo: ‘Bebei dele todos, porque isto é meu sangue, o sangue da Nova Aliança, derramado por muitos homens em remissão dos pecados.’" (Mt 26, 26-8)
Por mais que a diminuam os naturalistas instrumentos do academicismo moderno, a fé na presença real de Cristo na Eucaristia – corpo, sangue, alma e divindade – é o fundamento da cristandade, o eixo da civilização, o motor da reconquista ibérica sobre os muçulmanos na Idade Média e de seu transbordamento ultramarino até o Novo Mundo. Só por ela se pode entender a majestade arquitetônica das catedrais góticas, pois se aos monarcas deste mundo dedicam-se palácios e castelos, com muito mais justiça deve-se cobrir de pompa o Rei dos Reis, fisicamente entronizado no diminuto sacrário a cujo digno abrigo e adorno se ordenam os templos católicos. Só por heroica retribuição ao amor divino substanciado na Eucaristia pode-se entender o ímpeto apostólico de tantas ordens religiosas e tantos santos, dispostos a dar a vida em missão pela salvação das almas entre bárbaros e pagãos.
Com propriedade se lê em uma placa de Santa Cruz Cabrália, na Bahia, em memória da missa inaugural de frei Henrique ali celebrada: “Berço da Civilização Brasileira”. A própria Europa profunda, que todos apreciamos visitar (medieval, cristã), não teria emergido do paganismo à condição de luzeiro do mundo senão pela progressiva adesão ao mistério de amor infinito do Santíssimo Sacramento, custodiado e transmitido através dos séculos por meio da sucessão apostólica. A missa com que frei Henrique fundou na Bahia a Terra de Santa Cruz, muito acima de uma manifestação cultural a serviço de uma ocasião cívico-política, foi o evento sobrenatural que, pela primeira vez, fez descer o Céu às terras tupiniquins.
Não obstante as numerosas provas bíblicas da vontade de Cristo quanto aos meios de santificação e salvação legados à Sua Igreja, porém, do século XVI em diante a revolução protestante, a despeito de seu apego à letra das Escrituras ("Sola Scriptura"), paradoxalmente entendeu e propagou algo diverso. Rejeitando a Tradição e o Magistério da Igreja, o dissidente monge agostiniano Martinho Lutero (1483–1546) destinou palavras furiosamente injuriosas contra a “missa papista”, chegando mesmo a afirmar que, antes que celebrá-la, pecaria menos quem abrisse um prostíbulo. A abertura protestante à negação da presença real de Cristo nas espécies consagradas não surgiu, porém, sem que uma enfermidade filosófica a precedesse e preparasse.
Ferino contra a filosofia de Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) e sua absorção pela teologia católica na Escolástica, Lutero formou-se na ideologia universitária de sua época, o Nominalismo, doutrina segundo a qual não existem universais, apenas indivíduos. Assim, para o nominalista, a humanidade ou natureza humana não seria uma realidade objetiva, anterior e determinante do ato de ser dos indivíduos humanos, senão que seriam apenas nomes, rótulos sem correspondência essencial, atribuídos por conveniência àquele grupo de indivíduos em razão das semelhanças entre seus membros.
A doutrina aristotélico-tomista desagradava aos pretensos reformadores pela audácia com que, nela, a razão natural humana parecia-lhes ameaçar e submeter as verdades teológicas, sobrenaturalmente reveladas.
Por tal fissura infligida à magistral síntese filosófico-teológica de Santo Tomás de Aquino (1225–1274), fé e razão voltariam a separar-se de modo avassalador, cindindo a própria cristandade. Inaugurava-se o itinerário de esvaziamento metafísico do ente, do materialismo substancial, do voluntarismo e da degradação moral que, começando por rechaçar a revelação de Nosso Senhor acerca de Sua presença real no sacramento central da vida cristã, conduziria, após cinco séculos de desdobramentos revolucionários (liberalismo, iluminismo, comunismo, revolução sexual), à radical negação de uma natureza universal e imutável ao fundo de cada ser humano, abrindo caminho ao colapso psíquico generalizado, à dissolução da identidade individual e à consequente sistematização das mutilações corporais voluntárias — das transformações radicais de piercings, tatuagens e implantes cirúrgicos às terapias hormonais e cirurgias de “redesignação sexual”.
A doutrina aristotélico-tomista desagradava aos pretensos reformadores pela audácia com que, nela, a razão natural humana parecia-lhes ameaçar e submeter as verdades teológicas, sobrenaturalmente reveladas. Inversamente, porém, foi pela adesão a uma filosofia (Nominalismo) que o espírito protestante, partindo do livre exame da Bíblia, já em Lutero e ao longo da história subsequente, achatou as verdades reveladas sob uma hermenêutica imprópria, bloqueando os canais da graça e reduzindo a fé, de virtude sobrenatural infusa, a sentimento religioso, razão pela qual passariam a germinar, em pleno solo cristão, as sementes remotas da dissolução familiar, do relativismo moral e da ideologia de gênero contemporâneos: o divórcio e a contracepção — contra os quais, isolada, impõe-se até hoje a Igreja Católica. "Colhem-se, porventura, uvas dos espinhos e figos dos abrolhos? Toda árvore boa dá bons frutos; toda árvore má dá maus frutos." (Mt 7, 16-7)
Tempos atrás chegou-me o vídeo de um pregador presbiteriano, bastante influente na internet, em que, de modo tão respeitoso quanto possível a alguém na sua posição, serenamente percorria o roteiro habitual das supostas refutações protestantes aos “erros” católicos (dogmas marianos, veneração de santos, batismo de crianças, sacramentais etc.). Ao tratar da transubstanciação eucarística, não só descreveu com precisão a doutrina católica a respeito do dogma como, também precisamente, apresentou a doutrina aristotélica (substância e acidentes) de que se vale a Igreja para sustentá-lo filosoficamente. Dispensando, porém, a oposição nominalista herdada de sua ascendência calvinista, o referido pregador considerou suficiente argumentar que a presença real de Cristo na Eucaristia é absurda porque implica – “Imagine!” – admitir o próprio Deus onipotente submetendo-se ao arbítrio do manuseio humano… Com o que, não sem incontida ironia, deu por encerrada a questão. Ironia triste, decerto, posto que expõe a perturbadora incompreensão do núcleo mesmo da obra da Redenção, que em sua dimensão política atinge máxima carga dramática no diálogo entre Pilatos e Jesus (já brutalmente flagelado sob o arbítrio de mãos humanas), que o pregador pareceu desconsiderar: "Pilatos então lhe disse: ‘Tu não me respondes? Não sabes que tenho poder para te soltar e para te crucificar?’. Respondeu Jesus: ‘Não terias poder algum sobre mim, se de cima não te fora dado. Por isso, quem me entregou a ti tem pecado maior’." (Jo 19, 10-11)
Entre as milhares de denominações em que rapidamente se pulverizou o inconstante espírito protestante pratica-se o memorial da ceia do Senhor, mas sem a observância canônica estrita.
Não bastasse a suma humildade da Encarnação, em que o Verbo Divino desce da eternidade ao tempo para assumir a natureza humana, Seu amor sem medida quis ainda padecer sob o peso ignominioso do julgamento humano e da Cruz, pelo que aceitou percorrer uma via de sangue, dor e humilhação inimaginável do pretório de Pilatos ao patíbulo do calvário. Uma vez considerada tamanha demonstração da vontade divina em submeter-se ao “arbítrio do manuseio humano”, nada pode haver de absurdo em que Deus se permita manusear sob a devota suavidade das mãos sacerdotais na consagração e oferecimento eucarísticos no altar, tanto mais se pela obediência às instruções deixadas por Ele próprio.
Entre as milhares de denominações em que rapidamente se pulverizou o inconstante espírito protestante pratica-se, no entanto, o memorial da ceia do Senhor, mas sem a observância canônica estrita das espécies (pão e vinho), sem a sucessão apostólica (os reformadores a perderam ao dispensarem o sacramento da Ordem) e sem a intenção de fazer o que faz a Igreja (sacrifício). Não se dá, portanto, a presença real, objetiva de Cristo – por mais que a “sintam”.
Nesse sentido, suas congregações mais se aproximam das sinagogas que da Igreja, uma vez que, como os judeus, que desde a destruição do Templo em 70 d.C. não mais oferecem sacrifícios propiciatórios a Deus, também o protestantismo abdicou da continuidade sacrificial na Igreja Católica para encerrar-se no expediente rabínico da interpretação e pregação da Lei. Daí a frequente associação “judaico-cristã” (leia-se “judaico-protestante”) do neoconservadorismo político norte-americano, atualmente muito copiado e em ascensão no Brasil.
Entenda bem o leitor que não se trata aqui de um ataque à boa índole, à reta intenção e ao coração sincero dos que, em nossa época, buscando honestamente a Jesus e Sua Igreja, reúnem-se em tais congregações pelo honesto desejo de conhecer a Palavra de Deus e aperfeiçoar-se pela vivência do Evangelho — sejam líderes ou fiéis. Em que pese tudo isso, porém, trata-se de assinalar que na raiz mesma de tais iniciativas encontram-se objetivamente a ruptura teológica e os germes da revolução cujos efeitos, amplificados pelos séculos, o “conservadorismo cristão” de hoje pretende conter e debelar no âmbito político.
Se o ente é tudo aquilo que tem ser mas não é o próprio Ser, e se o próprio Ser subsistente (Deus) — que a todos os entes sustenta na existência — quis, por amor dos homens, fazer-se substancialmente presente na Eucaristia, rejeitar esse mistério significa desencadear no tempo a progressiva rebelião contra o ser substancial das coisas e das pessoas até a grave deterioração do senso comum, até o niilismo prático que nos obriga a metaforicamente afirmar, em alguns casos, que “a grama é verde”. Cristo, já ressuscitado, confere aos apóstolos um mandato de implicações políticas, ao determinar que convertam não só os indivíduos, mas as nações: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi.” (Mt 28, 19-0)
Tributa-se ao protestantismo, porém, tanto a propagação do laicismo liberal em Estados outrora cristãos como a rejeição ao Sinal da Cruz, caro aos católicos pela tradução em gestos daquela mesma exortação evangélica. Há uma conexão direta entre o retraimento da exterioridade simbólica cristã — sintoma do rechaço à Presença Real — e a progressiva descristianização das estruturas sociais, econômicas e políticas. No caso do Brasil, apesar das vitórias católicas contra as investidas militares e econômicas protestantes no chamado “período colonial”, em especial contra os holandeses no Nordeste, o protestantismo adentrou o país por pressão anglófila e sob a vista grossa das autoridades de um império que, apesar de ibérico e constitucionalmente católico, tinha suas instituições já amplamente penetradas pela Maçonaria e seu espírito anticlerical. Abalada a barreira católica contra a erosão revolucionária, criavam-se as condições para que os ideais comunistas - filhos do liberalismo - futuramente encontrassem espaço.
O leitor arguto, porém, poderia contrapor a tudo o que vai acima a observação de que boa parte da hierarquia eclesiástica de hoje não é propriamente contrarrevolucionária… Com tantos padres e bispos notórios à esquerda e seu contra-exemplo público de apostasia, e outros tantos mais afeitos ao regime moral de celebridades de TV do que ao prudente recolhimento sacerdotal – e ainda outras misérias que parasitam o clero e sangram o Corpo Místico de Cristo –, tal leitor teria razão. Faltaria assinalar, porém, que a força com que tal estado de coisas se desencadeou entre as fileiras romanas advém justamente da protestantização do Magistério, da liturgia e da espiritualidade católica a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) – assunto para outro artigo, quem sabe, pois este já vai longo.
Importa-nos, todavia, e deve nos animar a todos, a promessa de Nosso Senhor, ao estabelecer o primeiro papa, de que as portas do inferno não prevalecerão contra a Sua Igreja (Mt 16, 18). Ademais, tendo também prometido Sua presença entre nós até o fim do mundo (Mt 28, 20), há esperança para os discípulos que, como aqueles incapazes de suportar a dureza da já citada pregação eucarística, retornem junto aos Doze para repetir com Simão Pedro: “Senhor, a quem iríamos nós? Tu tens as palavras da vida eterna.” (Jo 6, 68)
Luciano C. Pires é membro do Centro Dom Bosco.