Há quatro anos, a Guatemala parecia pronta para começar uma nova era democrática, graças ao Estado de Direito e à transparência. Os protestos populares e juízes corajosos conseguiram o impensável, mandando um presidente em exercício, o ex-general Otto Pérez Molina, para a cadeia por corrupção, junto com vários membros de seu gabinete. A comissão anti-impunidade e corrupção organizada pela ONU, conhecida pela sigla CICIG, trabalhando em conjunto com o Judiciário liderado pela procuradora-geral Thelma Aldana, conquistou algo quase impossível, provando que os políticos poderosos nem sempre estavam acima da lei. A CICIG foi enaltecida como um exemplo para outros governos contaminados pela corrupção em toda a América Latina. Hoje, porém, essas esperanças se veem totalmente frustradas.
A Guatemala realizou eleições gerais em 16 de junho e os resultados do primeiro turno já saíram: a candidata à presidência de centro-esquerda Sandra Torres, da UNE, lidera com 25% dos votos. Só que ela foi acusada de aceitar US$ 2,5 milhões em fundos ilícitos de campanha, embora a procuradora-geral Consuelo Porras, demonstrando uma passividade desalentadora, tenha perdido o prazo de acusá-la formalmente antes da formalização da candidatura, garantindo assim imunidade a qualquer ação penal.
Por outro lado, quando a antecessora de Porras, Thelma Aldana, anunciou sua candidatura à presidência, 18 processos foram movidos contra ela, um juiz emitiu um mandado de prisão e um tribunal eleitoral a desqualificou às vésperas da confirmação oficial de sua candidatura, tudo por causa de acusações falsas. Aldana era líder nas pesquisas.
Essas eleições são a manifestação do desrespeito pelos valores democráticos fundamentais, pelas instituições e pelo Estado de direito
O complô unificador dessa eleição parece ter sido: "Não interessa quem vai ganhar, contanto que não seja Aldana." Daí um primeiro turno totalmente fragmentado, no qual o candidato que ficou em segundo lugar entre 19 concorrentes, Alejandro Giammattei, recebeu apenas 15% dos votos. Apesar disso, ele e Torres se enfrentarão no segundo turno, em onze de agosto. Giammattei tem apoio dos ex-oficiais militares leais ao antigo presidente, Pérez Molina, ainda na cadeia, e ao atual, Jimmy Morales. Este, quando descobriu, em 2018, que estava sendo investigado pela CICIG por contribuições irregulares de campanha, não só expulsou ilegalmente o comissário Iván Velásquez, como encerrou o mandato da comissão, que termina em setembro.
Em fevereiro deste ano, a CICIG forneceu provas para as acusações contra Torres. Graças à instituição, 33 parlamentares em exercício – o que corresponde a 21% do Legislativo – estão sob investigação por corrupção, embora suas posições lhes garantam imunidade legal. São políticos que pertencem a um bloco influente conhecido como "El Pacto de Corruptos", cujos integrantes, ao lado de Morales, tramaram e manipularam as últimas eleições para se proteger de acusações, com apoio daqueles que querem impedir que a democracia desafie a situação atual de corrupção. (Segundo a CICIG, nas duas últimas eleições, 50% dos fundos que os partidos políticos receberam saíram do crime organizado e da corrupção.)
A comissão também forneceu evidências que fizeram da mulher do magnata da mídia Ángel González – cujo monopólio sobre a TV aberta do país tem um papel semelhante ao da Fox News na defesa de Morales, e contra a CICIG – uma fugitiva da justiça, com direito até a mandado de prisão emitido pela Interpol.
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Ao longo da última década, a comissão denunciou 680 pessoas, prendeu dois presidentes, oficiais militares, líderes empresariais corruptos, chefões do narcotráfico e outros; os mais famosos, incluindo Pérez Molina, estão sendo mantidos no presídio militar Mariscal Zavala, de onde continuam exercendo sua influência.
Se analisarmos essa eleição como o ato do crime organizado que foi, Morales é simplesmente o responsável mais óbvio.
A CICIG é, de longe, a instituição mais popular da Guatemala, com 72% de aprovação. Por que um candidato à presidência competiria com ela? Se Aldana tivesse ganhado, teria sido a única candidata fora do esquema corrupto a favor da extensão do mandato da comissão. Com exceção de alguma reviravolta mirabolante – como Torres ou Giammattei de repente decidindo apoiar a CICIG com o objetivo de ganhar votos, ainda que traindo seus defensores mais poderosos – e, pelo menos no caso de Torres, deixando-a suscetível a um julgamento futuro, essa eleição significa o fim do trabalho da comissão.
Toda vez que tenho a oportunidade de escrever sobre a Guatemala para o público norte-americano, como tenho feito ocasionalmente há trinta anos, tenho de responder à pergunta: "Mas por que isso é importante para os norte-americanos?"
Sob vários aspectos, essa eleição diz mais sobre os EUA hoje do que sobre a própria Guatemala, onde a opinião amplamente compartilhada é a de que o governo Trump foi seu facilitador mais ativo. "O país continuará sob o controle das máfias que conseguiram acabar com a CICIG, graças exclusivamente ao apoio de Trump", me disse Manfredo Marroquín, diretor da ONG Acción Ciudadana e um dos poucos candidatos presidenciais promissores, apesar de pouco reconhecido, representando um dos partidos menores.
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Morales, ex-comediante de TV que fazia quadros apelando para o blackface, é um patife que sabe como levar a melhor com Trump. E, como o norte-americano, ele coloca seus interesses pessoais corruptos bem acima dos da população, principalmente dos mais carentes e marginalizados – no caso, os maias, que vivem no interior e estão fugindo da violência explícita, da pobreza e da falta de oportunidades, rumo à fronteira dos EUA. "É a Síria sem guerra", assim Marroquín descreve a situação, prevendo um aumento no êxodo de refugiados quando as máfias apertarem o cerco do governo e das instituições nacionais.
Essas eleições são a manifestação do desrespeito pelos valores democráticos fundamentais, pelas instituições e pelo Estado de direito, uma demonstração de desprezo absoluto pelas iniciativas internacionais, compartilhada por Morales, Trump e seus seguidores. O que aconteceu na Guatemala talvez seja a expressão mais paradigmática da visão de "governo democrático" de Trump que existe no mundo. Essa eleição sinaliza um perigo global iminente, exatamente como Trump quer e está tentando fazer com que seja. Devemos todos ficar atentos.
A democracia que os guatemaltecos defenderam corajosamente em 2015 está quase morta, embora ainda haja sinais paradoxais de vida. A participação popular nas urnas foi baixa, o que tradicionalmente não é sinal de esperança, mas nesse caso é, pois reflete o repúdio geral contra o estado de coisas atual.
Havia novos candidatos menores e promissores, como Marroquín, que talvez ganhe visibilidade no futuro. Acima de tudo, entre os candidatos estava Thelma Cabrera, representante da tribo maia mam e de um partido campesino pouco conhecido, com infraestrutura e verba mínimas, que recebeu apoio de Aldana, a ex-procuradora-geral. Cabrera terminou o primeiro turno em quarto lugar – e muitos dizem que, se a campanha tivesse durado mais umas duas semanas, ela teria emplacado no segundo turno. Que surpresa não seria para as máfias políticas da Guatemala.
Francisco Goldman, romancista e jornalista, é autor, mais recentemente, de "The Interior Circuit: A Mexico City Chronicle".
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