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“Moléstia” foi a palavra utilizada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, em recente palestra, para denunciar a excessiva judicialização e a busca da corte para resolver questões regionais mínimas e atritos políticos. O ministro Gilmar Mendes também já apontou o problema falando da doentia dependência jurídica da sociedade em relação ao Supremo. O ministro Luís Roberto Barroso tem criticado a insustentabilidade dessa situação, apontando como solução um limite de 120 julgamentos no Supremo por ano.
Por outro lado, cresce uma onda de desprezo pelo Supremo, que se espraia contra todo o sistema judicial, e isso é péssimo. Críticas, adesivos nos carros, ofensas nas mídias sociais e até ataques com rojões, formas de expressão popular que não podem ser desconsideradas, especialmente quando ultrapassam os limites da normalidade, como tem ocorrido. É preciso debater suas raízes, motivos, procurar entender esse desencanto, esse descontentamento muitas vezes agressivo e apresentar soluções.
Antes, por ser assunto delicado, é necessário relembrar que, como nas demais democracias, a nossa suprema corte é o órgão máximo da nossa Justiça; que sem justiça é impossível viver em sociedade; que sem justiça não há democracia; e que, em qualquer órgão colegiado, como o Supremo, é natural e salutar haver divergências de opiniões. O direito e a justiça, muitas vezes, acabam sendo definidos e concluídos pelo entendimento da maioria do tribunal, algumas vezes por pequena diferença de votos.
Deixando de lado os excessos e inaceitáveis agressões pontuais tentadas contra o Supremo, muitas decorrentes da polarização política e das facilidades permitidas pelas mídias sociais, é preciso dizer que a corte maior tem alguma culpa pela situação de desprezo em que se encontra. Com respeito, mas sem contornos, vamos às distorções estruturais do nosso sistema judicial, que o Supremo tem deixado acumular, sem o necessário enfrentamento, que causam demora, lentidão e ineficiência judicial.
Postas estas premissas, segue a crítica, com propostas de mudanças, tendo por eixo cinco pontos: 1. a exagerada competência originária e recursal do Supremo; 2. a monstruosa estrutura de até quatro instâncias de julgamentos do Judiciário, com elevadíssimo encaminhamento de processos subjetivos ao Supremo como quarta instância; 3. a divisão do Supremo em duas turmas de julgamentos; 4. o crescente poder dos ministros para decisões monocráticas; e 5. a inadequação da maioria simples para alguns julgamentos.
Primeiro: Virou até motivo de chacota a monstruosa competência processual do Supremo, quando comparada com as demais cortes supremas do mundo. Basta mencionar que recebeu 90.039 processos em 2019, sendo 20.125 da competência própria e 69.914 recursos contra decisões de outros tribunais, volume inviável para uma corte de 11 ministros, num país com elevadíssimo índice de judicialização, que precisa decidir centenas de questões nacionais urgentes, constitucionalidade de leis e conflitos políticos candentes.
O amplo poder concedido ao Supremo para decidir todas as questões constitucionais em quarta instância, em todos os tipos de processos, leva ao caos jurídico. Com uma Constituição extensa, regulando quase toda a vida nacional, o Supremo acaba recebendo milhares de processos subjetivos, recursos, questões particulares, que deveriam ser resolvidas nas três instâncias inferiores. Um único ministro prolatou perto de 7 mil decisões monocráticas em um ano. Uma suprema corte não pode perder seu precioso tempo com questões menores, em detrimento das questões nacionais urgentes.
Segundo. A estrutura de até quatro instâncias de julgamentos – juízo local, tribunal regional (federal e estadual), tribunal nacional (STJ, TST, TSE e STM) e Supremo – está intimamente ligada ao ponto anterior. Essa colossal estrutura, permeada com dezenas de recursos processuais e ações judiciais autônomas paralelas (mandado de segurança, habeas corpus, reclamações e ações cautelares), aproximam o nosso Judiciário de um sistema kafkiano, incompreensível para o leigo, lento e incompatível com a modernidade.
A Constituição de 1988 criou o Superior Tribunal de Justiça, com competência sobre todo o território nacional, para diminuir a carga de processos do Supremo e agilizar o sistema judicial. Esse importante tribunal, terceira instância de julgamento da Justiça comum, não foi suficiente, exatamente porque recebeu competência para julgar somente questões relacionadas às leis comuns, mantendo-se a competência do Supremo para todas as questões relacionadas com a Constituição, em todos os processos.
Essa divisão de poderes é insólita. As questões do processo são cindidas, o STJ decide as questões de lei comum e, depois, o mesmo processo pode ir ao Supremo para decidir questões constitucionais alegadas, que podem até modificar a decisão do STJ. Essa competência restrita do STJ, que não ocorre nas instâncias inferiores, confirmou, na prática, o que tem sido chamado de quatro instâncias, uma estrutura verticalizada, farta de recursos processuais, que faz os processos demorarem anos, quando não décadas.
A demora das quatro instâncias é sentida e muito criticada nos processos criminais, especialmente com a aplicação do famigerado princípio da inocência até o trânsito em julgado na última instância, novamente em vigor no nosso sistema judicial, permitindo que os processos criminais sigam com recursos até o Supremo, para, somente depois do último julgamento, iniciar o cumprimento da pena, causando anos de demora, aumentando a possibilidade de prescrição do crime, esquecimento e impunidade.
Terceiro. A divisão do Supremo em duas turmas de cinco ministros foi feita para enfrentar o monstruoso número de recursos de processos subjetivos vindos de outros tribunais. A divisão, por si, já é um problema, pois turma não é o plenário, único órgão que representa efetivamente o Supremo, conforme define a Constituição. A divisão gerou diferenças de entendimentos, injustiças comparativas e até jurisprudência setorial, exigindo a permissão de novo recurso ao plenário, mais atraso, mais processo e mais burocracia.
Quarto. O crescente poder dos ministros para decisões monocráticas, que tem causado acirramentos com os demais poderes políticos, grave insegurança jurídica e críticas fundadas de toda sociedade. É necessária a concessão de poder cautelar ao ministro relator para decisões urgentes; entretanto, a decisão deve ser submetida ao colegiado em prazo curto e certo, evitando a manutenção de um poder pessoal afrontoso ao plenário – onde as diversas visões são compensadas e pacificadas – e contrário aos princípios republicanos.
Quinto. O Congresso Nacional, composto por representantes eleitos pelo povo, decide por maioria simples, absoluta e qualificada (3/5), para aprovação de lei ordinária, complementar e emenda constitucional, respectivamente. O Supremo, composto por representantes indiretos, não eleitos pela população, decide sempre por maioria simples. Têm ocorrido muitos julgamentos com placar mínimo (6 a 5), instável, com baixa legitimidade e fraca densidade jurídica, gerando grave insegurança jurídica.
Não é razoável, por exemplo, que uma emenda constitucional, aprovada por 3/5 dos deputados federais (308 votos) e dos senadores (49 votos), seja suspensa por um ministro do Supremo, aguarde anos para ser submetida ao plenário e, por fim, seja declarada inconstitucional por maioria ínfima (6 a 5) e até ocasional. Os princípios republicanos e a segurança jurídica exigem uma similitude de procedimentos, exigem um aprimoramento da maioria necessária para declaração de inconstitucionalidade de leis.
O Supremo foi colocado nessa situação de crescente poder a partir do processo político de democratização realizado pela Constituição de 1988. A mesma Constituição, entretanto, impõe expressamente a todos os entes públicos obrigação de eficiência e, ao Poder Judiciário, em especial, o combate à demora processual (princípio da razoável duração dos processos). O Supremo tem de ser o órgão exemplar e protagonista na realização dessas determinações constitucionais. O Supremo está diante de um problema moral: manter vaidosamente o excesso de poder ou partilhar buscando eficiência sistêmica.
O Poder Judiciário brasileiro, pela sua formatação unitária e centralizada, imposta pela Constituição Federal, é doentiamente dependente de decisões nacionais objetivas do Supremo. A demora de anos para formação de jurisprudência nacional segura é mal que contamina todo o sistema judicial e dificulta a rápida busca de pacificação social. A reforma dos códigos processuais (Civil e Penal) e informatização, por mais excelentes que sejam, não são suficientes e adequadas para resolver problemas estruturais.
Não bastasse, a monumental máquina do Poder Judiciário – uma das mais dispendiosas do mundo civilizado em comparação com o PIB, e mesmo assim ineficiente, no que se refere à demora processual – exige a manutenção de grandes estruturas paralelas (procuradorias e defensorias públicas, advocacia, ministérios públicos, polícias e assessorias) que agregam proporcionais custos e despesas ao sistema judicial, tudo agravando fortemente o chamado “custo Brasil” e a eficiência da produção nacional.
Esse quadro de desajustes estruturais permite defender uma boa reforma no sistema judicial brasileiro, com as seguintes diretrizes: 1. conclusão de todos os processos subjetivos na terceira instância, transferindo mais poder ao STJ e demais tribunais superiores; 2. reservar ao Supremo apenas o julgamento de questões nacionais fundamentais, objetivas, através do controle concentrado de constitucionalidade de leis, normas e jurisprudências dos tribunais superiores; 3. eliminação do julgamento por turmas; 4. regulação detalhada dos poderes individuais dos ministros e prazos para os casos excepcionais de decisão monocrática urgente; e 5. aprimoramento da maioria do Supremo para julgamento de inconstitucionalidade de lei complementar e emenda constitucional.
A legitimidade social e respeitabilidade dos órgãos estatais dependem dramaticamente de procedimentos decisórios razoáveis, rápidos e justos. Somente uma reforma estrutural no Judiciário poderá resolver o seu histórico de ineficiência sistêmica, lentidão, insegurança e injustiça, permitindo conclusão mais rápida dos processos, jurisprudência constitucional estabilizadora em tempo mais curto, segurança jurídica e pacificação social. Se o modelo não funciona bem, deve ser aprimorado. O Brasil não avançará qualitativamente sem essa reforma. A sociedade precisa cobrar essas mudanças.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.