Numa guerra, suspendem-se inúmeras regras vigentes nas condições normais de temperatura e pressão. É crucial um grau maior de planejamento central, medidas drásticas que colocam para escanteio liberdades individuais são tomadas pelo Estado, e há uma mobilização incrível em torno de um só denominador comum: derrotar o inimigo. Não por acaso sentimentos coletivos como o patriotismo e o tribalismo costumam ser despertados em momentos assim, unindo o povo e, via de regra, produzindo solidariedade.
Durante uma guerra, cidadãos são convocados compulsoriamente para as batalhas, o governo emite títulos e moedas patrióticas, fábricas aceitam voluntariamente ou são obrigadas a redirecionar sua produção para a indústria bélica, e por aí vai. Todos entendem que a urgência da ocasião se impõe, e não há muito espaço para filosofar sobre direitos individuais. Há uma militarização da sociedade, em resumo, em que o Estado assume um papel decisivo.
Não por acaso os estatizantes gostam de metáforas com guerra. A “guerra contra a pobreza” justifica o avanço dos tentáculos do Leviatã sobre nossas liberdades e nossos bolsos. Mas há um problema: as sociedades mais militarizadas nesse sentido, com planejamento central e visão coletivista, costumam fracassar. Esparta pode ter sido eficiente no combate, mas foi Atenas que deixou um legado cultural ao mundo. A União Soviética, exemplo máximo dessa visão coletivista, foi um experimento terrível, que deixou um rastro de mortes, miséria e escravidão.
Em outras palavras: nenhum povo consegue viver por muito tempo como se estivesse eternamente em guerra. Ou, se for levado a isso, pagará um altíssimo preço em termos de progresso. As guerras demandam atitudes excepcionais, mas o quanto antes a sociedade retornar às condições de paz e liberdade, melhor. O coronavírus, que colocou o mundo todo de joelhos este ano, é como um inimigo invisível que declarou guerra à humanidade. A metáfora, aqui, certamente se aplica. Não é uma “gripezinha” e não é apenas histeria, por mais que esta exista como subproduto do pânico. O inimigo é real.
E isso justifica uma mudança drástica de software. Mesmo liberais entendem que o governo, nesse novo cenário, precisa gastar mais, deixar de lado a austeridade fiscal. Mesmo liberais sabem que as liberdades individuais serão inevitavelmente atingidas nessa hora, pois a meta prioritária é impedir uma catástrofe no sistema de saúde e a perda de milhares de vidas.
O problema, claro, é saber dosar com equilíbrio. Em ditaduras como a chinesa, basta o Estado decretar confinamento geral e todos têm de obedecer. Mesmo nas democracias orientais há o fator cultural de um coletivismo maior, e o hábito de aceitar mais passivamente a hierarquia de poder. Isso já não é igual nas democracias ocidentais. Felizmente, pois este é seu grande trunfo no longo prazo: o enorme apreço pelas liberdades individuais.
Nessas sociedades, haverá mais questionamento diante de medidas draconianas adotadas pelas autoridades, por mais que se entenda o que está em jogo. Os cidadãos não aceitam ser transformados em súditos da noite para o dia, e não enxergam os tecnocratas e políticos como seres clarividentes ou onipotentes. Eles sabem que há muita incerteza e falta de conhecimento, mesmo por parte dos especialistas, e querem preservar sua esfera de liberdade.
Conservadores americanos, por exemplo, têm se perguntado se a “cura” não tem sido pior do que a doença, não só pelo profundo estrago econômico que as paralisações da atividade produtiva vão gerar, mas pelo imenso poder delegado ao governo. Matt Walsh, do The Daily Wire, constatou que as clínicas de aborto foram consideradas “essenciais” e continuam operando, enquanto as igrejas foram consideradas “não essenciais” e fechadas. Para ele, isso é uma espécie de pesadelo distópico esquerdista, só que real, e muitos estão engolindo sem reagir.
Michael Knowles, da mesma empresa de Ben Shapiro, afirmou que quando soltamos bandidos perigosos e prendemos pastores que insistem em seu direito de pregar, então é porque o remédio já foi pior do que o problema original. O debate de até onde o Estado pode ir no combate ao vírus é intenso, e é isso que faz da América uma grande nação livre e próspera.
Até porque os esquerdistas jamais desperdiçariam uma oportunidade dessas. Obama, por exemplo, aproveitou o clima para trazer o “aquecimento global” ao debate, tentando capitalizar em cima do medo das pessoas. O ex-presidente comparou a pandemia com os riscos das “mudanças climáticas”, tentando avançar com sua agenda ambiental que justificaria, segundo ele, um papel muito maior do governo, quiçá um governo mundial. No Brasil, vimos o PSol falar em socializar UTIs privadas, controle de aluguéis, imposto sobre os mais ricos, tudo aquilo que adorariam fazer em condições normais, mas sabem não haver apoio da população. Ou seja, o vírus é tratado como o caminho para o socialismo.
Parêntese: a crise gerada pelo vírus de fato nos aproxima muito das realidades socialistas mundo afora. Faltam produtos nas prateleiras, o governo controla quase tudo, ficamos presos em nossas próprias casas, a atividade econômica desaba e a Justiça veta até passeatas pelo direito de trabalhar!
“O desejo de salvar a humanidade é quase sempre um disfarce para o desejo de controlá-la”, disse Mencken. Diante de uma ameaça “apocalíptica”, ficamos mais dispostos a entregar nossas liberdades para termos mais segurança, ainda que uma segurança questionável. Benjamin Franklin, porém, alertou: aqueles que estão dispostos a abandonar a liberdade essencial em troca de segurança merecem ficar sem uma e sem a outra.
Viver demanda certo grau de risco e coragem. Podemos contar com as munições que só o poder público possui nessa guerra, claro. Mas não podemos largar mão do ceticismo em relação ao poder, e tampouco “normalizar” medidas autoritárias. É preciso ter muito claro em mente que, tão logo a pandemia passe, temos de reverter esse quadro de controle estatal e retornar à agenda de reformas liberais. O estrago está dado, e não será pequeno. Mas ele será ainda maior enquanto durar a mentalidade de que cabe ao governo nos salvar e nos guiar rumo à prosperidade depois.
Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.
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