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Desde março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou que o mundo estava diante de uma pandemia de Covid-19, diversas medidas têm sido adotadas, tanto no nível internacional quanto regional e local, a fim de combater, da maneira mais efetiva possível, o avanço do vírus e suas novas variantes. Um dos principais esforços internacionais conjuntos foi o de controlar o trânsito de pessoas nas fronteiras, portos e aeroportos de modo a evitar o espraiamento do coronavírus e novos surtos da doença, que possam sobrecarregar ou fazer ultrapassar a capacidade de atendimento do sistema de saúde.
No Brasil, a Portaria Interministerial 655, de 23 de junho de 2021, atualmente em vigor, impõe aos estrangeiros que estiveram de passagem recente ou que vieram de países de notório impacto epidemiológico da nova variante delta do coronavírus uma quarentena mínima de 14 dias após a sua chegada no Brasil. Quatro atletas da seleção argentina de futebol que vieram disputar partida válida pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2022 contra a seleção brasileira, em 5 de setembro, enquadravam-se nesta hipótese normativa, pois estiveram de passagem pelo Reino Unido logo antes de entrar em território brasileiro. No entanto, deixaram de comunicar esse fato na Declaração de Saúde do Viajante que todo estrangeiro deve preencher na chegada; além disso, não cumpriram a quarentena prevista na norma.
Essa violação às normas sanitárias levou à interrupção do jogo pela Anvisa e pela Polícia Federal, que entraram em campo para fazer valer a normas sanitárias em vigor e deportar os quatro atletas argentinos, no estrito exercício de suas competências administrativas. Segundo as informações divulgadas pela Anvisa em seu relatório e pela CBF em suas notas oficiais, a Associação Argentina de Futebol (AFA) havia sido informada dessas regras em pelo menos três oportunidades anteriores. Além disso, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) havia se incumbido de obter uma autorização excepcional para os quatro atletas poderem jogar, mas não teve sucesso. Em uma reunião realizada na véspera do jogo com as autoridades e os representantes das demais entidades desportivas, os representantes da AFA parecem ter se limitado a informar que os quatro atletas não estavam cumprindo a quarentena e, inclusive, haviam deixado o hotel para treinar, violando o isolamento.
Como no dia do jogo os quatro atletas se deslocaram até o estádio, a Anvisa e a Polícia Federal direcionaram-se também para o local da partida a fim de notificá-los acerca da infração sanitária e providenciar a sua deportação. A AFA, porém, se recusou a apresentar os jogadores para que recebessem as notificações, o que parece não ter deixado alternativa às autoridades a não ser interromper a partida para fazer valer as normas sanitárias em vigor.
Os quatro jogadores argentinos e a AFA poderão responder a processos administrativos, além da possibilidade de vir a serem responsabilizados civil e penalmente, dado o que dispõe o artigo 8.º, inciso I, da Portaria Interministerial 655, lastreado no artigo 11 da Lei Federal 6.437/1977. A propósito, as notícias mostram que podem ter sido caracterizadas as práticas das infrações com circunstância agravante, conforme o artigo 8.º, VI (dolo e eventual fraude no preenchimento da Declaração de Saúde do Viajante), as quais se encontram previstas no artigo 10, XXIX e XXXI, da Lei Federal 6.437/1977, que prevê ainda a imposição de sanções de advertência e multa, além da própria deportação dos atletas.
Por outro lado, a AFA e os atletas argentinos podem eventualmente apresentar evidências que comprovem uma excludente de ilicitude neste caso – mais precisamente, um fato de terceiro. Afinal, conforme narrado nas notícias e nas informações oficiais divulgadas, a Conmebol é que havia se incumbido de obter a autorização excepcional para que os quatro atletas pudessem jogar, mas não conseguiu o documento. Isso poderia fazer com que, em tese, os argentinos possam argumentar que não foram eles os responsáveis pelas infrações sanitárias, conforme a lógica do artigo 3.º, § 2.º da Lei Federal 6.437/1977.
Os juízes tendem a aceitar o argumento, porque há uma diferença entre a responsabilidade objetiva e a subjetiva. Existem casos em que não há multa ou pena de prisão, pois é preciso comprovar culpa ou dolo. Pode ser que os atletas argentinos tenham agido imbuídos da crença de estarem beneficiados por autorização excepcional. Essa situação é caso fortuito, que pode até ser considerado indução em erro, com excludente de responsabilidade. Do ponto de vista estitamente jurídico, é possível ser acatada a tese.
Independentemente disso, o fato é que o jogo válido pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2022 não foi realizado, frustrando uma série de interesses, entre eles culturais, desportivos e econômicos, todos de difícil reparação. Com a suspensão da partida, a Fifa avaliará se é o caso de se marcar uma nova data para sua realização ou declarar um vencedor desde logo, o que pode trazer vários desdobramentos por ora imprevisíveis. Por isso, o episódio evidencia a importância do compliance sanitário e regulatório para a realização de eventos dessa magnitude, pois pode prevenir não só os danos mencionados, mas também (e principalmente) promover a segurança dos bens jurídicos protegidos pela legislação, ao mesmo tempo em que evita eventuais sanções administrativas.
Num momento em que vários setores da economia pretendem retomar suas atividades presenciais, por exemplo, este episódio mostra a importância de um planejamento e um compliance consistente para que os empreendimentos disponham dos elementos suficientes e necessários para comprovar que adotaram as medidas apropriadas em conformidade com as normas sanitárias ainda em vigor.
Gabriel Menegazzo é acadêmico de Direito. Rafael Ferreira Filippin é doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento e mestre em Direito.