| Foto: Marcos Tavares/Thapcom
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Encontro, depois de muito tempo, meu antigo amigo e colega de trabalho. Na primeira fase de nossa amizade, quando nos conhecemos, era o tipo de pessoa com quem me agradava conversar, interessado pelos mais diversos assuntos, generosamente cínico, dono de um ótimo senso de humor e ainda outras qualidades. Apesar de seu crônico ceticismo, contou-me certa vez que havia chorado várias vezes ao ler Confissões, de Santo Agostinho. Eu, que ainda não havia lido o livro, achei fabulosa a revelação.

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Passado algum tempo, já na segunda fase da amizade, encontro-o na internet como candidato a vereador por um partido de extrema-esquerda (sim, apesar de os jornais darem a entender que todos os extremos estão à direita, existem também partidos de extrema-esquerda). Naquele ano, foi um dos poucos candidatos em quem deixei registrado em meu perfil no Facebook que não votaria. Achei, inclusive, ser o caso de dizer-lhe isso pessoalmente. Amigos, amigos, ideologias à parte; feito isso, a amizade permaneceu a mesma.

Aliás, tão inalterada que não resisti em fazer-lhe algumas observações em memória de antigas conversas. Resumindo todas, sobre o que havia feito com seus mais notórios hábitos, posturas e opiniões conservadoras; e que iam desde seu grande apreço por antigas tradições marciais até suas opiniões divertidíssimas – e cínicas – a respeito da esquerda brasileira. Notei que soava muitíssimo estranho, para muitos que o conheceram em sua primeira fase, vê-lo usando seus novos adereços ideológicos; inclusive pelo quanto não pareciam de fato serem seus. O que me levava a suspeitar, coisa mais complexa, ser ele o caso de um esquerdista nascido em um corpo conservador (e do qual só agora imaginava haver se libertado).

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Minhas dúvidas eram muitas. Entre elas, sobre se realmente acreditava que os maiores problemas da humanidade passavam obrigatoriamente pelas questões da sexualidade. Sempre julguei, aliás, que se a ideia fosse mesmo lutar pelos direitos de oprimidos e injustiçados, faria mais sentido lutar por crianças e idosos, levando em conta os números dos dois grupos e o fato de se constituírem em parcelas da população que não podem se defender por conta própria. Claro, havia ainda as dúvidas da esfera política e econômica; mas estas são questões mais complexas ou, no mínimo e como a ideia era preservar o senso de humor, menos pitorescas. Considerando nisso, inclusive, que outros antigos amigos de esquerda não só costumam ignorar as cartilhas de orientação sobre as “pautas de intimidade”, como julgam muitas das normas da correção política como coisas ilógicas e desprovidas de fundamento, mas que devem ser defendidas como perfeitamente lógicas e cheias de fundamento em função de necessidades políticas.

Tentando manter uma seriedade com a qual nenhum dos dois estávamos habituados, meu amigo respondeu que “essas eram as lutas do nosso tempo”, comparando-as com outras da história americana (ou “estadunidense”, como imagino que ele agora prefira). Lembro-lhe a inconstância teórica da esquerda a respeito do assunto, usando teorias cadas vez mais voláteis e contraditórias. Como resposta, o esclarecimento de que isso ocorre precisamente por conta das características fluidas das pós-modernidade. Novamente pondero que, pensando bem, boa parte da realidade é conservadora – por imperiosa necessidade, aliás – mesmo para a esquerda, e a brasileira em particular, tão apegada aos seus exegetas (“Marx não quis dizer isso quando afirmou...”), profetas seculares, hinos (e muitos foram os produzidos pela MPB, por exemplo) etc.

Diante de meu ceticismo, pergunta-me quais seriam, então, as lutas de nosso tempo. Um patinete elétrico passou; perguntou-me se eu tinha WhatsApp ou ainda usava ICQ, respondi que ainda preferia orelhões e, por fim, trocamos os respectivos números de celular. E disse-lhe que, de meu ponto de vista, as lutas do nosso tempo poderiam ser vistas em três ou quatro livros (ou na própria Bíblia, e já no Gênesis, pensando bem agora...): A abolição do homem, de C.S. Lewis; Admirável mundo novo e (o pouco lido) Regresso ao Admirável Mundo Novo, ambos de Aldous Huxley; além do mais citado que compreendido A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Os nomes mudam, mas as tentativas continuam semelhantes: autossuficiência, racionalização, construção de uma sociedade perfeita.

Não deixa de haver certo romantismo em projetos que tinham como objetivo revolver toda a estrutura social para colocar em seu lugar um outro mundo. Eu próprio já me encantei com essa possibilidade. Mas, tivesse eu 18 anos, acredito que a ideia de uma luta e uma causa que exigisse bem pouco esforço da minha parte e ainda permitisse apresentar-me como altruísta não conseguiria despertar meu entusiasmo. Ficaria talvez desconfiado de que estava sendo enganado, ou de que algumas coisas eram contraditórias demais para o meu gosto, que ouvir rock era mais interessante, ou que o politicamente correto de daí a 30 anos seria, pensando agora, muito parecido com os meus livros bobinhos de Educação Moral e Cívica da escola; princípios que soam postiços, afirmações ridiculamente moralistas, e a obsessiva ideia de as pessoas não serem capazes de discernir entre o que é mais correto e menos correto fazer em cada situação de suas vidas.

Na verdade eu já tive 18 anos, e lembro-me que adorava ler (em sebos e na biblioteca pública de Belo Horizonte – eu era um garoto sem dinheiro!), encontrar-me com minha namorada e gastar parte da vida subindo montanhas, coisas que no fim significavam, hoje vejo, as melhores formas de compreender o mundo que poderia ter encontrado.

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Fábio Viana Ribeiro é sociólogo e professor associado da Universidade Estadual de Maringá.