Algumas semanas atrás, eu pus meu headphone e passei mais de duas horas conversando, explorando e debatendo com Bret Stephens, do New York Times, no podcast “Honestly,” de Bari Weiss. Você pode encontrar o episódio aqui.
Os tópicos abordados variavam, mas a questão central era se nós (norte-americanos e ocidentais em geral) gozávamos de liberdade demais ou de menos. Minha posição era que muitas das nossas graves patologias hodiernas, tanto sociais como econômicas, têm origem em má liberdade demais e em boa liberdade de menos: isto é, liberalismo demais e pouca liberdade clássica e cristã. Bret Stephens (obviamente, para quem quer que conheça sua cosmovisão) tomou a posição oposta.
Em alguns casos, houve questões concretas ligadas às políticas públicas. Um dos assuntos em que isso veio à tona foi se o governo deveria apoiar a formação de famílias, encorajando o casamento e a procriação por meio de auxílio financeiro público, amparado pela força da lei. Stephens defendeu que, desde que ninguém impedisse outrem de casar e ter filhos, a gente era livre o bastante; e (sendo este o caso) não havia necessidade especial de apoio do governo. Sua posição era reminiscência de uma observação de Anatole France levemente alterada: “A lei, em seu silêncio majestoso, deixa os ricos e os pobres dormirem debaixo das pontes, mendigarem nas ruas e roubar pão.”
Defendi que agora vivemos numa ordem social e econômica na qual casar e ter filhos é, para muitos, quiçá para a maioria dos nossos compatriotas, bem mais difícil do que rejeitar uma ou as duas coisas. Para possibilitar uma escolha genuína que deixasse a gente casar e ter filhos, e ter um ou ambos os pais capazes de passar tempo em casa criando os filhos pessoalmente, e não chegar a uma condição de extrema penúria financeira, faz-se necessária a assistência da ordem pública. Para o liberal, basta a aparência da escolha teórica. Para o pós-liberal, a escolha genuína – e, além disso, o encorajamento a fazer a melhor escolha que exige pensar além do interesse próprio individual – não pode existir na ausência de um vasto apoio público, cívico e familiar.
Para Mill, a questão era que os direitos políticos seriam inúteis a menos que as pessoas fossem libertadas daquilo que ele chamava de “despotismo do costume"
Argumentei que, ademais, a ordem pública tem interesse em encorajar a formação de famílias com crianças, e não só porque uma nação procura procura fomentar condições gerativas das futuras gerações. Como eu argumento neste clipe, a maioria dos seres humanos acaba aprendendo de modo mais profundo sobre a extensão do sacrifício quase ilimitado, mas ordinário, quando tem filhos. É quando fazemos pequenos sacrifícios e deveres como pais que nos damos conta, de uma maneira mais plena e profunda, dos sacrifícios que os nossos pais fizeram por nós.
Para mim, no entanto, o aspecto mais surpreendente do debate foram as nossas diferenças quanto às origens do atual “wokismo”. Para Bret Stephens (e, suspeito, para Bari Weiss também), o wokismo progressista é um desvio do bom e velho liberalismo. O que tentei mostrar a ambos, e à audiência dela, foi que os elementos do “wokismo” não surgem de alguma filosofia sucessora, como o “marxismo cultural”, como a maioria dos liberais clássicos pretende. Em vez disso, argumentei eu, é o desdobramento natural e até inevitável da transgressão, a característica central do liberalismo. Nada revelou mais essa diferença do que um breve debate entre Stephens e eu quanto ao entendimento que se deve ter do legado de John Stuart Mill.
Stephens citou Sobre a liberdade, de Mill, como o texto que exemplificava a sua posição: as pessoas deveriam ser tão livres quanto possível, desde que não causassem dano a ninguém no exercício de sua liberdade.
Eu, por outro lado, defendi que o argumento de Mill contém o núcleo da própria ideologia progressista liberal que hoje emergiu como “wokismo”. No frigir dos ovos, Mill não defende a liberdade como um bem em si mesmo, senão como meio para o progresso. O título do livro deveria ser Sobre o progresso, ou Como a liberdade leva ao progresso. A resposta: destruindo a tradição e derrubando uma ordem conservadora moldada em defesa da gente comum, em prol de uma ordem revolucionária que favorece uns poucos.
A sociedade que Mill procura criar acima de tudo é a que encoraja os indivíduos transgressores a se libertarem das normas sociais, culturais e tradicionais. Ele pega o bastão liberal onde Locke o deixara: tendo conseguido criar ordens políticas liberais que asseguram direitos individuais, a questão de Mill era que tais direitos seriam inúteis a menos que as pessoas fossem libertadas daquilo que ele chamava de “despotismo do costume”. O principal propósito de Sobre a liberdade não é assegurar a liberdade política (que ele acreditava ter sido já amplamente alcançada em países como a Inglaterra), mas a liberdade social, uma liberdade que exigia o desmantelamento dos costumes e da tradição. Isto era especialmente necessário para não-conformistas, pessoas que queriam desdenhar das normas que governam a maior parte da vida quotidiana. Entre os despotismos que detêm os não-conformistas, podemos ver claramente, hoje, os seguintes: a expectativa de que a gente venha a casar e ter filhos em algum ponto do começo da vida adulta; a ser membro duradouro de alguma congregação religiosa; e a conduzir a si própria com bom comportamento e decência.
Uma vez liberta a gente, Mill argumentava, o genuíno propósito da liberdade poderia emergir: o progresso. Enquanto a gente não estivesse suficientemente liberta do “despotismo do costume”, o progresso seria obstado. Enquanto os não-conformistas fossem impedidos de se meterem em “experimentos da vida”, as sociedades tenderiam a se replicar. As tradições passariam de uma geração para a outra.
A maioria das sociedades, escreveu ele, não tinha “nenhuma História”, propriamente falando. Isto é, as coisas aconteceram dia após dia, mas não havia nenhuma trajetória progressiva rumo à História. Só quando o “padrão” social trocasse a “tradição” pelo “experimentalismo”, teria início uma História apropriada e progressista.
Por esta razão, Mill temia que hoi polloi [os muitos, em grego] fossem o maior perigo para a liberdade genuína: sempre eram um obstáculo conservador contra o progresso genuíno. Mill era pródigo em suas críticas aos “conservadores”, chamando-os notoriamente de “partido estúpido” e argumentando em prol de votos plurais que iriam aumentar com a quantidade de graus educacionais alcançados por um indivíduo. Ademais, quanto à gente obscurantista que vivia em sociedades muito tradicionais, ele argumentava que, em tais casos, a tirania (ao menos temporária) estava justificada em nome da liberdade: "Um governante pleno do espírito de aprimoramento tem o direito de usar quaisquer expedientes que alcancem um fim. […] O despotismo é uma maneira legítima de governo quando se lida com bárbaros, desde que o fim seja o aprimoramento deles, e os meios sejam justificados por meio do sucesso nesse fim."
O que “liberais clássicos” como Bret Stephens (e Bari Weiss) abominam nos “progressistas” é o seu autoritarismo. Quão peculiar – e revelador – que Bret Stephens tenha elogiado uma obra intitulada Sobre a liberdade, aparentemente sem se dar conta de que os herdeiros de Mill haveriam de condenar a gente atrasada como uma “cesta de deploráveis” e uns “agarrados” às Bíblias. Tais liberais acreditam que podem pôr o gênio despótico de volta na garrafa defendendo a liberdade ilimitada. Isso também é algo que Mill queria, uma posição que levou a um clamor por despotismo sobre a plebe ignara. O que escapa a “líderes intelectuais” aparentemente instruídos como Bret Stephens é o fato inconveniente de que foram os frutos de sua própria filosofia que liberaram o déspota interior do liberalismo. Só uma ordem pós-liberal pode renovar o ensinamento de um tipo melhor de liberdade.
Patrick Deneen é professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e autor de "Por que o liberalismo fracassou?" (Âyiné, 2020). Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.
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