Quando o irmão Ludvig, igualmente milionário, morreu durante uma temporada em Cannes, um jornal local sapecou a manchete: “O mercador da morte está morto”. Impressionado, o verdadeiro inventor e fabricante da dinamite, o sueco Alfred Nobel, imaginou que seria brindado com necrológios implicáveis, mais cruéis. Sete anos depois, em novembro de 1895, em Paris, ele redige um testamento legando o grosso da fortuna (cerca de US$ 472 milhões em valores da época) para um fundo destinado a premiar anualmente cinco figuras de qualquer nacionalidade que ofereceram importantes contribuições à humanidade nos campos da química, física, medicina, literatura e paz.
A atribuição, na última quinta-feira, do Nobel de Literatura à jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich (nascida na Ucrânia) está destinada a provocar um escarcéu local e internacional talvez superior às premiações de Boris Pasternak (1958) e Alexander Soljenitsin (1970). Ou da não premiação de Liev Tolstói (1828-1910) por causa de um mal-entendido no regulamento. Previsto para obra comprometida com “uma direção ideal”, o júri entendeu-a como obra “idealista”, assim eliminando o nome do barbudo conde e utopista (e também do teatrólogo norueguês Henryk Ibsen).
Svetlana devolve o jornalismo à sua gênese narrativa, genuinamente literária
Outro russo que causou enorme estrago na Cortina de Ferro – embora não fosse escritor ou poeta, mas físico e pacifista –, Andrei Sakharov ajudou na derrocada da imagem pacifista da União Soviética. Em 1975, ao ganhar o Nobel da Paz a despeito de sua contribuição no campo da física nuclear, consagrou-se como intransigente defensor da liberdade de pensamento e expressão. Seguindo Einstein, comprovou algo extraordinariamente simples: ciência e humanismo podem ser convergentes.
Svetlana Alexievich é herdeira do celebrado fervor da “alma russa”, mas também da bravura das suas mulheres (homenageadas em uma das suas primeiras obras, A guerra não tem rosto feminino, sobre as mulheres que combateram o inimigo nazifascista no período 1941-1945). Intensas, passionais, destemidas, prontas para o supremo sacrifício, elas nos remetem tanto à sublime Anna Karenina como à indomável Anna Politkovskaya, jornalista dissidente, assassinada em 2006 pelo Estado policial que o totalitário Vladimir Putin herdou do bolchevique Josef Stalin.
A contundência da obra, as perseguições, mordaças e exílios impostos à autora e, agora, o reconhecimento mundial de ambos certamente ajudarão a implodir o universo de burlas, farsas, patranhas e canalhices montado a ferro e fogo pelos caudilhos Putin e seu pupilo Alexander Lukashenko (presidente vitalício da Belarus desde sua criação formal, em 1994).
“Agora, eles terão de me ouvir”, disse Svetlana numa das primeiras entrevistas depois de anunciado o prêmio. Censurada, sobretudo banida do meio em que vive, Svetlana é uma não pessoa, proibida de ser, existir, manifestar-se. Não pode ser mencionada, citada, vaiada ou aplaudida. Escreve incessantemente, porém não se fala dela – a não ser no exterior. A condição de morto-vivo é sustentada por um sutil conjunto de embargos destinado a perenizar os “marginais”. Não é invenção soviética, é um diabólico artifício dos sistemas autoritários e intolerantes facilmente encontrável nos quatro cantos do mundo.
A premiação da jornalista que escreve livros impedida de manifestar-se em jornais, revisitas ou mesmo portais deve provocar outros benfazejos estrondos, explosões e estalos. As vozes que Svetlana Alexievich registra nas suas demoradas investigações, assim como a força com que as transcreve, é um ostensivo desafio – mais do que isso, um repúdio – ao mundanismo, superficialidade e simplificação que hoje parece dominar parte significativa dos veículos jornalísticos.
Svetlana devolve o jornalismo à sua gênese narrativa, genuinamente literária. Retira-o da contaminação dos emoticons e da tentação viral, e restitui à humanidade algo mais duradouro e palpitante do que a destreza digital.
Graças à sua dinamite, Alfred Nobel nos propicia anualmente magníficos impactos e restaurações.
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