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Nos últimos tempos, a cultura do cancelamento tem sido uma prática comum nas redes sociais. É o que acontece a um influencer ou pessoa pública que profere, pelos meios digitais, palavras, expressões, imagens, discursos que exaltam, por exemplo, o antissemitismo, o racismo, a homofobia, a misoginia ou a intolerância religiosa. Essas manifestações de bullying on-line estão sujeitas ao que nas redes sociais ficou classificado como banimento digital. O indivíduo é cancelado e tem a conta ou serviços na internet suspensos. Temos visto algo assim no caso de um influenciador que taxou um clássico da literatura como “racista” ou na iniciativa tomada por escolas canadenses de queimar milhares de livros infantis que supostamente continham representações estereotipadas de povos indígenas. Mas, será que livros “racistas” devem ser “cancelados”?
A princípio, essas manifestações, que misturam ambientes privados e espaços públicos, estão ligadas ao desejo do indivíduo de conquistar o maior número possível de seguidores, mas geralmente – ou quase sempre – não deseja ouvir os contrapontos proporcionados num ambiente tão plural como é o das redes sociais. O público formado nesse ambiente é como uma espécie de avaliador digital e estabelecem princípios, valores “tiktoknianos” de certo ou errado, bom ou ruim, gosto ou não gosto, aprovo ou não aprovo, serve ou não serve, é justo ou injusto. Os limites éticos estão estabelecidos moralmente num “like” ou “dislike”.
Nas discussões públicas de longa data sobre os efeitos catastróficos que o racismo causou e ainda causa nas sociedades modernas, é preciso dizer que não cabem as posturas “tiktoknianos”.
Ao apontar para essa dinâmica, não estou estabelecendo um juízo de valor, mas é importante contextualizar que, nesse ambiente, regido pela cultura do cancelamento, criou-se nos últimos tempos a ideia de que as redes sociais não são um espaço para discussões públicas. Quando não se concorda com algo, simplesmente cancela-se o indivíduo.
Voltando à questão, se livros “racistas” devem ser “cancelados”, levando em conta as discussões públicas de longa data sobre os efeitos catastróficos que o racismo causou e ainda causa nas sociedades modernas, é preciso dizer que não cabem aqui as posturas “tiktoknianos”, pois perguntas diretas e tão sérias como a apresentada devem ser respondidas da mesma forma.
Livros “racistas” devem ser “cancelados”? Sim, mas não no sentido “tiktoknianos”. Para reforçar o meu posicionamento quero resgatar uma passagem de uma entrevistado cientista social Carlos Moore. Para o autor, o racismo é a última “fronteira do ódio entre humanos, precisamente porque raça é a mais profunda e duradoura linha divisória que determina quem tem acesso privilegiado e protegido aos recursos da sociedade, e a quem é vedada qualquer oportunidade de usufruto desses mesmos recursos”. É sempre importante alertar que o racismo imprime marcas e legados nas dinâmicas sociais e, mais do que isso, perpetua ideologias, que se transformam em crenças que, muitas vezes, atravessam gerações.
A possibilidade de livros racistas reforçarem e eternizarem estereótipos, preconceitos e discriminações, ajudando assim na manutenção de práticas racistas como chamar negros de macacos ou naturalizar discursos de superioridade de determinados grupos humano em relação a outros, devem ser não somente cancelados, mas proibidos por lei; isso se desejarmos realmente uma sociedade democrática que valoriza a sua diversidade étnico-racial.
O que se verifica nas últimas décadas, aliás, é a construção de uma consciência de resistência e de luta pelo respeito à diversidade, por meio de práticas institucionais e epistemológicas que vão além das já constituídas historicamente pelo legado colonialista. Daí a importância de instituições como o Conselho Nacional de Educação (CNE), que, em 2010, tendo como conselheira a professora doutora Nilma Lino Gomes (UFMG), emitiu um parecer técnico e crítico sobre o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato.
O parecer, com todas as prerrogativas que a uma educadora e pesquisadora compete, constatou na época que o conteúdo do livro era estereotipado em relação a população negra e ao universo africano. A conselheira indicou – não cancelou ou tão pouco sugeriu que a obra fosse banida – que se tomasse algumas ações a fim de que a obra não continuasse servindo como instrumento naturalizador do racismo brasileiro.
A pesquisadora Nilma Lino Gomes comentou, em seu parecer, que as “obras literárias e seus autores são produtos de seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização de negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência, dentre outros”.
Na discussão pública sobre a relação entre livros literários e racismo, a pesquisadora, em nenhum momento, desejou o banimento ou cancelamento da obra ou do autor. Para a professora, qualquer outra obra literária que naturalize o racismo precisa ser lida a partir do olhar contemporâneo de leitores alinhados a políticas públicas para uma formação educacional e cidadã antirracista. A comercialização do livro está relacionada às relações de dominação existentes.
Destarte, além da análise crítica de formas de hierarquia racial os livros didáticos, pelo alcance que tem, por atuarem na formação das identidades de crianças e jovens e pelo investimento público em sua compra e distribuição, devem seguir o princípio ético de adotarem posturas antirracistas, o que significa valorizar a pessoas, ao conhecimento, a história e a cultura das pessoas negras e indígenas.
Não reconhecer isso significa ignorar uma imensa quantidade de dados disponíveis, nos diferentes países (nesse caso, ocidentais), que ligam o conhecimento escolar às dinâmicas de classe, gênero e raça, dentro e fora de nossas instituições educacionais. Combater o racismo não significa lutar contra indivíduos, mas se opor às práticas e ideologias com as quais o racismo opera através das relações culturais e sociais.
Sergio Luis do Nascimento, doutor em Educação pela UFPR, é professor da Secretaria Estadual de Educação do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Membro do Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR.