O aumento das restrições ambientais para a circulação de carros na principal cidade do país é uma contradição apenas aparente ao crescimento da indústria automobilística
São Paulo anunciou que implantará a lei mais restritiva de controle de emissão de poluentes no mundo. Frente à tolerância dos atuais 160 microgramas de materiais particulados por metro cúbico, a tolerância se limitará a 140 migrogramas/m³ nos próximos três anos, e 100/m³ em data posterior a ser definida. Nos dias em que forem ultrapassadas, ações como ampliação do rodízio veicular serão impostas.
Enquanto isso, como publicou O Estado de S.Paulo, em 29 de maio, o Brasil está correndo para conseguir ser o terceiro maior mercado de carros no mundo. Até o fim de abril, era o sexto, segundo dados da Anfavea, com mais de 1,1 milhão de carros vendidos apenas nos primeiros quatro meses de 2011. À frente, EUA, Japão e Alemanha são tradicionais produtores de carros; já China e Índia têm indústria automobilística relativamente recente, como nós. Em produção de veículos por habitante, já estaríamos à frente de China e Índia.
Recente estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrou que o crescimento na compra de carros no Brasil nos últimos dez anos foi de 9% e a venda de motos cresceu ainda mais: 19%, sendo 6,6% só no ano passado.
O aumento das restrições ambientais para a circulação de carros na principal cidade do país é uma contradição apenas aparente a esse crescimento da indústria automobilística. A austeridade do poder público em fazer leis para que os motores sejam mais eficientes cria a ilusão de que o governo está se mexendo para o bem da qualidade de vida geral quando, na verdade, está reforçando a indústria automobilística. Desde que se possa continuar a expansão da venda de carros, ótimo.
Além disso, enquanto há um forte investimento público e privado na formação técnica para o desenvolvimento tecnológico na Índia e China, que produzem seus próprios carros com maior parte dos componentes desenvolvida pela sua própria indústria (ou seja, há uma cadeia extensa de inovação internalizada na cultura científica, tecnológica e econômica desses países), a indústria brasileira apenas monta os carros desenvolvidos pelos outros com raros centros de inovação para componentes específicos.
Os carros rodam nas cidades brasileiras consumindo petróleo com um preço artificialmente baixo, seja por medidas pontuais da Petrobras, seja, principalmente, pela militarização ostensiva do Oriente Médio. Não vamos mudar nossos hábitos por razão tão distante; mas convém termos consciência de que alguém está pagando a nossa conta e quanto mais invisível e distante esse alguém, melhor.
Alguém não tão distante, e não tão invisível, também está subsidiando quem pode andar de carro. Enquanto a venda de automóveis e motos cresceu, o número de passageiros de ônibus caiu 30%. Por quê? Além do positivo aumento da renda da população e barateamento do carro nos últimos dez anos, a tarifa de ônibus cresceu 60% acima da inflação (INPC) no mesmo período. E, além de o governo federal subsidiar a gasolina, recentemente, para "conter a crise", baixou impostos da indústria automotiva e ampliou a concessão de créditos aos bancos para que abrissem linhas de financiamento para compra do "carrinho" dos brasileiros.
No nível local, o argumento que deveria ser motivo de interdição do mandatário é que investimento em sistema viário beneficia também o usuário de ônibus. Uma pessoa usando carro ocupa uma área de quatro a cinco vezes maior da via pública do que um passageiro de ônibus, simplesmente porque a ocupação média do ônibus supera os 30 passageiros e a do carro, dois. Assim, qualquer obra "pública" para o sistema viário é, na verdade, obra para aqueles que têm carro. É a maneira mais fácil das prefeituras promoverem segregação social.
Tragicamente, esse movimento conjunto da indústria automotiva e das políticas públicas dirigidas a beneficiar as classes mais altas, vem cobrando seu preço. Nos últimos dez anos, o número de mortes entre pedestres e ciclistas ou passageiros de transporte coletivo caiu cerca de 30% o que devemos comemorar; já entre os usuários de automóveis, dobrou o número de mortes no trânsito; e 10 vezes mais motociclistas morreram. Não pode haver dúvidas de que as políticas dos governos federais e municipais para a mobilidade urbana têm de mudar.
Fábio Duarte é coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Gestão Urbana da PUCPR.
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