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| Foto: BRENDAN SMIALOWSKI/AFP

O discurso do presidente Donald Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) foi endereçado para o mesmo alvo da Carta da ONU: a “população do mundo”; mas visou, de fato, apelar às emoções do público nacional. A Carta da ONU sempre refletiu uma tensão histórica entre um projeto universal voltado para a humanidade e outro centrado no Estado nacional. No último dia 13, Trump se posicionou claramente em prol dessa última visão de mundo, caracterizada por Estados soberanos e independentes, sobre os quais recairia a responsabilidade primeira de proteger seus cidadãos.

À primeira vista, a defesa veemente de Trump da soberania como princípio basilar da ordem internacional sugere uma política de retração das intervenções norte-americanas coerente com seu “realismo de princípios”. De fato, muitas das ideias do seu discurso ressoam aquelas contidas nos famosos princípios do realismo delineados por Hans Morgenthau, que advertiu os líderes políticos norte-americanos, no curso da guerra do Vietnã, a se conterem, já que uma política voltada para universalizar os valores do país pelo mundo afora seria o primeiro passo para a ruína dos Estados Unidos. Do mesmo modo, Trump se opôs à ideia da universalização do modo de vida americano, revelando-se disposto a encerrar o protagonismo dos Estados Unidos na condução de intervenções voltadas para a reconstrução de Estados à sua imagem: democráticos e liberais. Por outro lado, à la Morgenthau, Trump advogou por uma política centrada exclusivamente em interesses e em resultados, desprovida de quaisquer considerações ideológicas.

Ao contrário do que afirma, a ideologia se torna para Trump a chave para a desqualificação dos outros Estados

As coincidências entre Morgenthau e Trump, contudo, se revelam pós-verdades quando analisadas à luz das contradições do discurso do presidente norte-americano. Para Morgenthau, a apreensão ideológica da política internacional conduz a uma demonização de determinados indivíduos e regimes. Longe de professar uma política ideologicamente esvaziada, Trump continua guiado pelo imaginário cindido da Guerra Fria, dividindo o mundo entre o bem e o mal, entre responsáveis e irresponsáveis e entre justos e perversos. No lado do bem, da bondade de coração e do sacrifício, ele situa os Estados Unidos, enquanto, do lado da nova reedição do “eixo do mal”, ele aloca os líderes e regimes da Coreia do Norte, do Irã, da Venezuela e de Cuba.

Ao contrário do que afirma, a ideologia se torna para Trump a chave para a desqualificação dos outros Estados. Para o presidente norte-americano, os Estados movidos por ideologias vis, sinistras e falidas seriam a principal ameaça à segurança internacional e precisariam ser detidos por sanções e, se necessário, pelo uso da força militar. Na sua visão, por exemplo, as falhas da Venezuela não seriam derivadas de uma implementação desviada do socialismo, mas do fato do socialismo ser um desvio em si. Sob essa ótica, o problema central deixa de ser as armas à disposição desses Estados, mas o fato dessas capacidades de destruição estarem nas mãos de líderes irresponsáveis que, conforme ele destaca em relação à Coreia do Norte, assassinam crianças e familiares. Fica claro que a tão aclamada soberania de Trump, citada 21 vezes no seu discurso, não valeria para o Irã e para os norte-coreanos. A soberania continuaria sendo uma “hipocrisia organizada” ou, a partir da nova gramática, uma “pós-verdade organizada”.

Opinião da Gazeta: O acerto e os erros de Trump (editorial de 30 de janeiro de 2017)

A resposta dos governantes alvos da fúria de Trump não custou a chegar, embaralhando as fronteiras entre o bem e o mal. O presidente do Irã, Hassan Rouhani, respondeu ao “ignorante discurso de ódio” típico dos “tempos medievais” de Trump com poesia e afirmou que seria uma pena se o acordo nuclear fosse destruído por “corruptos recém-chegados ao mundo político”. O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, chamou Trump do “novo Hitler”. O ministro das Relações Exteriores da Coréia do Norte, Ri Yong-ho ridicularizou as ameaças feitas por Trump de “destruir totalmente” seu país, dizendo que o presidente norte-americano apenas “late”. O discurso intimidador de Trump se tornou, desse modo, objeto de zombaria por parte dos Estados agredidos.

Resta saber até quando Trump continuará latindo sem morder. Ao não dissuadir seus adversários e ainda ser motivo de chacota, a agressividade do discurso de Trump pode ter o efeito não pretendido de forçá-lo a uma ação militar para não ser desacreditado aos olhos da sua principal audiência, a nacional. Novamente, o discurso de Trump não cumpre um dos princípios centrais do realismo de Morgenthau, o da prudência. Se, por um lado, sua visão de um mundo cercado por terroristas pode contribuir para seu objetivo primeiro, o da solidificação do patriotismo no território nacional, por meio da conquista dos corações e mentes dos americanos, por outro lado, seu discurso extremista pode conduzir a intervenções não desejadas, mas necessárias para a preservação da imagem de superioridade da nação norte-americana.

Leia também: Para onde Trump quer levar o mundo? (artigo de Jorge Mortean, publicado em 16 de junho de 2017)

O problema do discurso de Trump é que ele reduz significativamente as escolhas políticas, afinal, o próprio pacto com o Irã foi entendido por ele como “constrangedor”. O discurso da “destruição total” do seu adversário pode se converter numa profecia autorrealizável. Todavia, se, como Trump coloca, os norte-coreanos são vítimas e não podem ser responsabilizados pelas ações funestas de seu governo, o que lhes acontecerá, para onde fugirão uma vez que as fronteiras dos Estados Unidos estarão fechadas e que a sua recomendação é a de que os cidadãos não migrem? O discurso de Trump reduz tanto as opções políticas que, no lugar da reconstrução de nações, talvez não lhe reste outra alternativa do que a destruição total de nações em nome de uma nação em primeiro lugar, os Estados Unidos.

Marta Fernández é diretora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, especialista em Teoria das Relações Internacionais, pós-colonialismo, África e Segurança Internacional
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