Poucas vezes na história do Brasil tivemos um Judiciário tão notável. Remete-se aqui não às virtudes de nossos juízes, mas ao sentido da palavra que indica algo que pode ser percebido com facilidade. Mesmo sendo o mais oligárquico entre os Três Poderes, as decisões do Judiciário, sobretudo as do Superior Tribunal Federal, têm ganhado as ruas: para horror de uns, que denunciam a emergência de um "populismo judicial", e louvor de outros, que veem neste movimento a possibilidade de contato entre os ouvidos da corte e os "reais anseios da população".
Com um Legislativo omisso em relação aos chamados "temas polêmicos" eufemismo usado para se referir a assuntos eleitoralmente sensíveis , é o STF que tem funcionado como arena para as disputas mais controversas. E com base em quê julga o STF? Seria, de fato, a Constituição o alicerce único de nossos ministros? Provavelmente não: é no Supremo que identificamos com clareza aquilo que o economista americano Thomas Sowell chamou de Conflito de Visões. A letra fria da lei está lá, sob o olhar atento dos especialistas. Porém, ao proferirem seus votos, é evidente que a frieza da lei é submetida a um exercício de interpretação que extrapola o texto constitucional.
O que Sowell chama de "visão" é uma espécie de "pressuposto fundamental" sobre o qual alicerçamos nossos juízos cotidianos, seja na política, na economia, na justiça ou em qualquer outro tema. É um "ato cognitivo pré-analítico", como disse Joseph Schumpeter, ou o que costumeiramente chamamos de "visão de mundo". São balizas tão organicamente gravadas em nós que, a despeito de nossas inabaláveis certezas, muitas vezes mal conseguimos verbalizá-las de forma lógica.
Sowell distribui esses postulados em duas visões, que ele classificou como "irrestrita" e "restrita", numa referência direta às potencialidades do homem. Na primeira, os eventuais problemas do mundo podem ser sanados por meio da ação consciente e direta dos homens. Já a segunda vê o mundo como um lugar dotado de defeitos endógenos e cujas soluções definitivas não estão ao alcance humano. Para esses, tentar sanar o irremediável é como submeter à cirurgia um paciente cuja enfermidade não se pode diagnosticar com exatidão: o efeito costuma ser contraproducente.
No caso da justiça, a visão irrestrita vê o "justo" como um resultado, enquanto que a visão restrita a entende como a garantia de um processo. A recente aceitação da constitucionalidade do sistema de cotas raciais pode ser vista como o triunfo da visão irrestrita. Injustiças pontuais podem ocorrer eventualmente um negro abastado pode vir a ocupar a vaga que, por mérito, seria de branco pobre. Porém, segundo uma leitura irrestrita, enquanto não houver a reparação de uma injustiça fundamental do passado, não há possibilidade de justiça no presente. Por outro lado, a visão "restrita" diria que por mais nobre que seja a proposta, a simples "deformação" do processo em nome do justo nada mais é do que o vício travestido de virtude.
Desde já ou seria desde sempre? a Constituição acolhe o sistema de cotas raciais, o aborto em casos de anencefalia, a inelegibilidade dos "fichas-sujas", a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Por mais nobres que sejam, difícil é dizer em que medida se essas decisões proveem da pena constituinte, ou se são apenas reflexos do mundo visto pela lupa de nossos juízes.
Elton Frederick, mestre em Ciência Política pela PUC/SP, é especialista em Política e Relações Internacionais. E-mail eltonfrederick@gmail.com
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