Dezoito anos depois da proposta inicial do Projeto de Lei 4.742/2001, que sugere a inclusão do assédio moral como crime no Código Penal brasileiro, a Câmara dos Deputados aprovou o texto na terça-feira, enviando o projeto ao Senado.
Na época da proposição, o termo era desconhecido e as pesquisas ainda estavam em fase inicial. Agora é difícil haver alguém que desconheça, não tenha vivenciado ou não tenha assistido ao desgaste de algum colega, diante de hostilizações e constrangimentos recorrentes no trabalho, os quais ofendem a dignidade e a honra.
Diversos estudos internacionais estimam que entre 15% e 30% dos trabalhadores sofrem assédio moral no decorrer de sua vida funcional, com impactos significativos no ambiente de trabalho, nos índices de afastamento por problemas de saúde mental e até na ocorrência de suicídios. O assédio moral é um fator frequentemente relacionado aos desgastes mentais no trabalho. No Brasil, os problemas de saúde mental figuram como um dos principais motivos de afastamento no trabalho e o principal em número de dias de trabalho perdidos, segundo levantamento do INSS.
Há avanços significativos na compreensão teórica, nas iniciativas sindicais, organizacionais e no âmbito da Justiça. Ainda assim, o assédio moral desafia por sua complexidade de compreensão, de encaminhamentos e por sua recorrência. Algumas empresas públicas e privadas apresentam iniciativas internas sobre o tema, como a instituição de comissões específicas de prevenção e enfrentamento do assédio moral.
Criminalizar o sujeito individual – gestor ou trabalhador – por práticas de assédio moral é escolher não ver que há responsabilidades compartilhadas
Como um problema social relevante, o assédio moral precisa ser enfrentado também pela via legislativa. Neste sentido, o PL 4.742 apresenta um novo mecanismo jurídico, na forma da criminalização. Entretanto, de que estamos tratando ao olhar para o assédio moral no trabalho? De quem é a responsabilidade por estes atos? Embora no projeto de lei isso possa não estar explícito, independentemente do texto, abordar o assédio moral como crime guarda pressupostos que precisam ser esclarecidos.
Ao propor o assédio moral como crime, como faz o PL 4.742, reduz-se à pessoa singular toda a responsabilidade por comportamentos que, efetivamente, decorrem também da maneira como o trabalho está organizado, das formas de gestão e de como as relações acontecem. No Brasil, a perspectiva dominante de compreensão é ainda muito restritiva, considerando esta prática como um problema entre vítima(s) e agressor(es), deixando à sombra os contornos organizacionais e do próprio trabalho, que por vezes solicitam, estimulam e até premiam tais ilícitos.
O assédio moral como tipo penal teria uma provável capacidade de punir uma prática pessoalizada deste tipo de violência, que tem a intencionalidade mais explícita e que envolve ataques diretos, públicos e extremados. Entretanto, seria insuficiente para punir situações que transcendem a perseguição pessoal e se configuram como hostilidades mais difusas e menos pessoalizadas, na forma de abusos de gestão que usam o medo, a vergonha, a humilhação e ameaças para forçar alguém a produzir e a dar resultados.
Em um contexto de metas exigentes e crescentes, por vezes descoladas da realidade das condições de trabalho e do mercado, exige-se do trabalhador desempenhos exponencialmente superiores. E não basta apresentar resultados, é necessário ser melhor que os outros e superar seus próprios patamares anteriores, para sobreviver na carreira.
Carlos Ramalhete: Masculinidade tóxica (publicado em 14 de fevereiro de 2019)
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A hostilização e as pressões descem pela estrutura hierárquica e se expressam também entre pares. Mais que uma violência de um contra o outro, vivemos uma violência de todos contra todos, conforme já nos alertam o psicossociólogo Vicent de Gaulejac e também o filósofo Byung-Chul Han.
O medo de não estar à altura das exigências e a necessidade de se superar produzem individualismo e coisificação de si e do outro, que são defesas psicológicas de sobrevivência, conforme explicitado pelos estudos do psiquiatra francês Christophe Dejours. Desconsiderando os limites humanos e entregando à carreira o sentido de existência, distancia-se da noção de certo e errado e flexibilizam-se valores outrora inegociáveis. Desta forma, constranger ou excluir alguém que aparentemente ameaça impedir sua autorrealização e seu sucesso faz parte do jogo, ou seja, tem aspecto de naturalidade, como se pudesse ser justificável.
Ao premiar e promover os profissionais “de excelência”, com resultados sempre crescentes, sem considerar os meios e a maneira como isso ocorre, as organizações assumem uma posição de risco, sendo negligentes ou até estimulando práticas de assédio moral, ainda que possam ter pouca clareza disso ou que prefiram olhar sem ver. Assédio moral pode dar lucro e resultados no curto prazo, ao menos na lógica da racionalidade econômica e instrumental, que faz questão de não enxergar a contabilidade da existência humana.
Criminalizar o sujeito individual – gestor ou trabalhador – por práticas de assédio moral é escolher não ver que há responsabilidades compartilhadas e querer legislar com base em sentimentalismos tóxicos, como nos alerta o psiquiatra Theodore Dalrymple. As pessoas precisam e devem, como adultos, responder por seus atos, tanto em processos administrativos internos quanto na Justiça. Por meio das leis já existentes, o Judiciário tem capacidade para reconhecer e condenar as práticas de assédio moral no trabalho, tanto na forma de ataques pessoalizados como também no exercício abusivo da gestão.
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Identificar gestores e trabalhadores como criminosos e até prendê-los (em um país onde não há vagas no sistema prisional) pode ser uma medida que não protege ninguém, descolada da realidade social, das responsabilidades compartilhadas e das diversas configurações do assédio moral no cotidiano. Achar culpados e condená-los pode ser um atalho que tira foco do árduo processo de construir soluções efetivas que respondam à complexidade do problema.
É chegada a hora de pensarmos não em uma legislação que tente, em vão, condenar culpados e proteger vítimas, mas em uma lei que nos estimule coletivamente ao respeito como condição essencial de nossa existência, a partir de uma maior consciência das nossas escolhas e das nossas responsabilidades enquanto sociedade, organizações e indivíduos, encarando o mal que existe em cada um de nós. Por isso, o projeto de lei precisa ser redirecionado com ousadia para considerarmos o óbvio: o risco de que esta tentativa de avanço acabe, na realidade, levando a um retrocesso que condena indivíduos singulares e protege outros participantes, desconsiderando as responsabilidades subjetivas.
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