| Foto: Christian Bowen/Unsplash
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A questão da assistolia fetal, proibida pela resolução do Conselho  Federal de Medicina, levantou alta polêmica não só entre profissionais da Medicina e do Direito, mas, principalmente, entre os Poderes e a sociedade. Trata-se de uma injeção de cloreto de potássio, aplicada no coração da criança, de 22 semanas em diante, já formada, para que  deixe de bater. Tendo em conta o sofrimento que comprovadamente causa para o nascituro, o referido Conselho emitiu uma resolução contra esse cruel procedimento de aborto, que pode ser perfeitamente enquadrado no artigo 5º da Declaração Universal de Direitos Humanos, que proíbe a tortura.

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Ainda que a medida seja claramente racional, razoável, ou como diria o professor John Finnis, da Universidade de Oxford, evidente por si mesma, a campanha midiática destinada a tergiversar dados, sustentando o fim da cadeia da hipersexualização utilitarista – ou seja, o homicídio uterino, e seu lucro econômico e político às custas da mulher, e do bebê, por suposto! –, cumpriu seu papel de confundir e desviar a sensatez e a sensibilidade humana.

Se esgotamos a argumentação diante da verdade objetiva, despojados de qualquer interesse de grupo ou próprio, vemos que a defesa da assistolia fetal é injustificável e insustentável

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Sobre o tema, gostaria somente de fazer algumas breves considerações jurídico-antropológicas. Em primeiro lugar, podemos pensar que combatemos – em que nível! – efeitos, mas não as causas. Nesse sentido, teríamos que enfrentar a estimulação sexual precoce, descontextualizada e exacerbada, aliada ao baixo nível de educação, que animaliza o ser humano, tornando-o refém de manipuladores econômicos ou políticos. Por outro lado, como vai se tornando prática, vamos nos acostumando a poupar culpados e punir inocentes, no caso, deixando à solta os estupradores e colocando os bebês no lixo.

Se esgotamos a argumentação diante da verdade objetiva, despojados de qualquer interesse de grupo ou próprio, vemos que a defesa da assistolia fetal é injustificável e insustentável, inclusive, proibida no país, até mesmo para animais. De fato, é bem conhecido que o estupro é um álibi utilizado para a autorização do aborto, despojado de qualquer necessidade de comprovação. Desde meus tempos de estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco a manobra era o triste subterfúgio, uma mentira existencial que se torna social.

Paralelamente, dentro de nossa completude jurídica, a vida é inviolável a partir da Constituição; o aborto, considerado crime pelo Código Penal, despenalizado em duas hipóteses, e o nascituro, protegido, pelo Código Civil e tratados internacionais, que equivalem a emendas constitucionais. Nesse sentido, destaco a título ilustrativo, que nos países onde, infelizmente, vigora a pena de morte, a mulher grávida não pode sofrê-la por portar consigo o filho.

De fato, embora não tenha personalidade jurídica, por não registrado, segundo a Filosofia do Direito e a antropologia filosófica, é considerado pessoa o ser individual de natureza racional e relacional, no caso, já presente, desde a concepção, juntamente com o código genético, que torna esse ser humano único. Sua dignidade inerente, portanto, é pertencer à espécie humana, desde seu primeiro instante de vida, ainda que dependente da mãe, condição também da nossa natureza, que nasce, vive e morre, de certa maneira, dependente dos demais.

De qualquer forma, vemos que o desejo insaciado de usar e abusar dos humanos, sem entendê-los com profundidade, e, à luz de um pragmatismo inconsequente, termina  por obstruir ainda mais o caminho de sua própria felicidade – é fato a depressão reinante em nosso século –, a começar por dissociar sexo de amor.

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Nesse contexto, apesar da clareza jurídica e da evidência antropológica, sociológica, humana, como diria Hannah Arendt, através da suspensão da resolução do CFM, pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, os bebês continuam padecendo e sendo descartados. Vidas únicas, que teriam o direito de desempenhar seu papel no mundo. Penso que o direito à vida é indiscutível e só posto em pauta para protegê-lo ou projetá-lo mais eficazmente.

Porém, tal debate pertence aos representantes eleitos do povo, em locus democrático. Nesse sentido, muito se tem trabalhado no Congresso Nacional, que, apesar de falsamente acusado, não tem sido omissp. Dessa forma, não se justifica, nem a ADPF 442, onde um partido recorre ao “paternalismo” judiciário – imaturidade política –, para solicitar a legalização do aborto, em vez de discutir com seus iguais, nem a decisão da Suprema Corte com relação à Resolução do CFM, cabendo, sim o PL 1904/24, que aprofunda incisivamente no tema, embora, a meu ver, devendo punir em muito maior intensidade o estuprador do que a mãe.

No fundo, o que vemos, apesar da deformação midiática proposital, é que ainda somos capazes de defender a nossa própria raça, tendo também no coração nossa tradição, muito bem narrada por João Cabral de Melo Neto, diante da “explosão de uma vida”, metaforicamente referindo-se ao momento do nascimento: é Severina, mas é vida!.

Angela Vidal Gandra da Silva Martins, professora de Filosofia do Direito da Universidade Mackenzie, é sócia da Gandra Martins Law, gerente jurídica da Faesp, presidente do Instituto Ives Gandra de Direito, Filosofia e Economia e ex-secretaria nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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