Sessenta anos atrás, a morte de Evita Perón gerou uma comoção nacional que os argentinos nunca foram capazes de realmente absorver e superar. Até hoje, a memória de Evita domina a cena, condiciona opiniões e impõe paralelos. Há algo mais evidente e patético que a obsessão de Cristina Kirchner em transformar a morte do marido e a sua viuvez em um fato político?
Agora é Hugo Chávez, cujo velório é a maior manifestação popular vivida na história moderna da Venezuela, com multidões aos prantos e cenas de desespero, que terá o corpo embalsamado e colocado em uma urna de cristal para ser admirado eternamente pela população.
Não é de admirar. Todo governante populista que morre enquanto no poder assume imediatamente o título de Pai dos Pobres e seu corpo passa a ser uma peça valiosa no xadrez político. Afinal, será da evocação de seus feitos reais e imaginários que se nutrirá a entourage que o sobreviverá. Foi assim na União Soviética, na Argentina e, se não foi na China, isso se deve à existência de uma burocracia pós-maoísta altamente pragmática, com Deng Xiaoping à frente do Programa das Quatro Modernizações, que nunca teriam saído do papel se o Grande Timoneiro continuasse vivo.
Pessoalmente, detesto essa cultura macabra, em que os mortos insepultos continuam a mandar na vida dos vivos. Mesmo porque duas coisas inevitavelmente acontecem. A primeira é que imediatamente aparecem pessoas que se arvoram em intérpretes das ideias e vontades dos defuntos ilustres e acabam colocando em suas bocas agora inertes e indefesas muitas coisas que talvez nunca lhes tenham passado pela cabeça.
Segundo, porque a vida política é cheia de armadilhas e nada garante que, com o tempo, o corpo não se mostre um estorvo. A pobre Evita não vagou por décadas, dentro de um caixão nos fundos de um cinema ou no ático do apartamento de um diplomata argentino em Bonn? Mesmo quando devolvida ao viúvo, Juan Domingo Perón, não descansou. O General montou uma câmara ardente em sua chácara de Puerta de Hierro, próxima de Madri, em um quarto do primeiro andar e, como peregrinação obrigatória dos líderes peronistas que iam buscar orientações e ordens, se incluía uma visita reverente ao corpo de Evita.
Cadáveres podem ser também instrumentos de mesquinhez e de vingança política solerte. Na Índia antes da independência, muitos dirigentes ingleses, sabendo das restrições religiosas dos locais, agiam deliberadamente para contrariá-las: hinduístas, cujos corpos deveriam ser incinerados em piras para poder reviver, eram enterrados. E mulçumanos, cujos corpos deveriam ser enterrados com o rosto voltado para Meca para seu descanso eterno, eram incinerados em piras, apenas como demonstração de arrogância e crueldade dos colonizadores.
Defuntos, políticos ou não, devem ser deixados em paz. Agora mesmo estou matutando que valor científico e histórico pode ter a exumação do corpo de dom Pedro I? Não há suspeitas de que tenha morrido envenenado como Napoleão, pelo que se sabe; e nem razões para perturbar seu sono. Pelo jeito, isso será feito apenas para enriquecer o Currículo Lattes de alguns professores universitários.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.