Quem não admira uma bela paisagem, um rio sem poluição, uma reserva florestal? Quem não gosta de um bom vinho, casa confortável, automóvel para viajar, cozinha bem equipada, um bom colchão e a possibilidade de uma viagem de avião a outro continente vez ou outra? Aparentemente, não há contradição alguma entre desejar tais cenários. Como diria Platão, entretanto, uma coisa é a aparência, outra, o ser. Pois, de fato, no mundo da verdade, não há incompatibilidade entre um cenário e outro. Porém, no mundo das narrativas que se travestem de verdade – no varejo da Nárnia nossa de cada dia –, algo em vivíssima moda, nem tudo é tão claro e distinto.
O que a eleição de Gaia como objeto de culto e o cancelamento do direito ao desenvolvimento, direito inalienável dos países subdesenvolvidos, têm em comum? Onde a mentira fissurou o tecido da verdade e se travestiu de boa moça? Quem lançou no debate sobre o desenvolvimento a cápsula de fumaça (green is good) do Batman? Nesse cenário, qual o melhor mapa para compreendermos as origens de tanta confusão conceitual?
O aparato da propaganda que cria as narrativas sobre o meio ambiente e o indigenismo é alimentado por muitos cifrões e pessoas em altas posições de poder
Desde 2001, ao menos um ensaio muito consistente se apresenta como guia indispensável na barafunda do debate sobre o meio ambiente e o indigenismo. Trata-se do livro Máfia Verde: o ambientalismo a serviço do governo mundial (editora Capax Dei), já um best-seller em 13ª edição, escrito a várias mãos. O ensaio não é bom porque é um best-seller, mas é um best-seller porque é bom. De autoria de Lorenzo Carrasco, Silvia Palacios e Geraldo Luís Lino, a sensação que o leitor tem ao final do caminho da leitura é: como puderam enganar tanta gente por tanto tempo? Porém, em análise mais detida, não é um disparate que tenham enganado muitos há muito.
O aparato da propaganda que cria as narrativas sobre o meio ambiente e o indigenismo é alimentado por muitos cifrões e pessoas em altas posições de poder, bem como por várias ONGs, as quais invadem competências dos Estados soberanos e passam a ser os veículos de interesses internacionais, de oligarquias, travestidos das mais elevadas e puras intenções rumo ao “bem comum da humanidade”. O que surpreende, entretanto, é que os argumentos do ensaio ainda não tenham ganhado os corações e mentes com a ênfase devida, ou seja, com a mesma ênfase da maquinaria das narrativas mainstream. Isso porque, após a leitura do livro, fica evidente, por razões históricas e geopolíticas de peso, que fomos enganados. O ensaio de Carrasco, Palacios e Linoé uma verdadeira aula, ou melhor, um curso inteiro, indispensável e obrigatório, de história e geopolítica.
O livro se estrutura em treze capítulos e quatro apêndices. A seguir, faço breves apontamentos, deixando ao leitor que se interesse a tarefa de ir ao texto e experimentar por si mesmo a consistência da argumentação e das provas históricas das teses do livro.
O leitor que se aventura pelos capítulos logo terá as provas incontestes de que um aparato internacional – formado por oligarquias antiquíssimas (a coroa britânica, a coroa holandesa, oligarcas das finanças etc.), ONGs criadas ad hoc e boa parte do poder financeiro mundial - está, há tempos, implantando um neocolonialismo. Aliás, projeto já realizado em grande monta, como o livro mostra à exaustão e com surpreendente grau de detalhes.
Para que o leitor tenha uma imagem panorâmica de uma das consequências do que o ensaio mapeia, basta um exercício simples. Uma passada d`olhos no site Flightradar24, que mostra o movimento de aeronaves no mundo inteiro ao vivo, explicita, como num grande painel, a resultante da história geopolítica que o ensaio Máfia Verde registra em detalhes. Com efeito, pelo site é possível ver a quantidade de aviões (um índice da sofisticação tecnológica e do desenvolvimento) que sobrevoa os eixos desenvolvidos do mundo em contraste com aqueles que não tiveram acesso a este direito até os dias atuais. Causa estupefação a comparação entre a quantidade de voos presentes na Europa e na América do Norte em relação àqueles presentes na África e América do Sul.
Como apontam os autores ao longo do ensaio, uma agenda antinacional foi introjetada no texto constitucional
A nobre defesa de Gaia, do meio ambiente (dos países escolhidos) e dos povos originários, na realidade, segundo o ensaio, não passa de um malabarismo geopolítico que vem sendo aplicado há décadas e tem impedido o acesso das populações de várias partes do mundo, de muitos países, ao desenvolvimento, aos bens materiais básicos, à energia e, por conseguinte, à dignidade.
Por fim, como último registro a essas breves notas, ressalto o importantíssimo texto, que compõe um dos apêndices do livro, de um dos juristas brasileiros de escol, Clovis Ramalhete (1912-1995). Ramalhete foi Ministro do STF e integrante da Corte Permanente de Arbitragem de Haia. Trata-se da reprodução de artigo publicado originalmente no Jornal do Brasil em 30 de outubro de 1993. Já nesta ocasião, alertava o jurista sobre a ameaça do capítulo indígena da Constituição de 88 “à organização nacional, à sua integridade e ao desenvolvimento”.
De fato, como apontam os autores ao longo do ensaio Máfia Verde e como antevira o renomado jurista, uma agenda antinacional foi introjetada no texto constitucional. Foi introduzida no país “a mais restritiva legislação do planeta e uma legislação indígena [...] contrária à integração nacional ao fomentar divisões étnicas entre os diversos grupos formadores da nacionalidade”.
É digno de nota que aos autores de Máfia Verde se soma já há algum tempo um nome de grande peso intelectual e político, a saber, o de Aldo Rebelo, que recentemente lançou um ensaio sobre a Amazônia – A Maldição de Tordesilhas: 500 anos de cobiça internacional (ed. Arte Ensaio).
Alguém disse que as estatísticas são como o biquíni: mostram coisas interessantíssimas, mas escondem o essencial. Esse é o espírito dessas esparsas notas: dar a saber, mas sem mostrar o essencial do livro já clássico de Carrasco, Palacios e Lino. À boa leitura, com diria o mestre Antonio Valverde, que me deu régua e compasso para dele discordar em quase tudo, menos no direito ao bom e civilizado debate.
* Uma resenha completa do livro Máfia Verde será publicada pelo autor na Revista de Geopolítica em setembro de 2024.
Luiz Carlos Montans Braga é professor de Filosofia do DCHF da UEFS- em licença. É autor dos ensaios “A lente e o pince-nez: Machado de Assis, Espinosa e a cultura política no Brasil” (Cadernos Espinosanos), “Filosofia, alienação, dominação: Álvaro Vieira Pinto e o conceito de tecnologia” (no Prelo). Pesquisa autores da filosofia brasileira, especialmente Álvaro Vieira Pinto e Gustavo Corção.
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