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Quando eu estava começando a trabalhar como terapeuta, uma colega me contou uma experiência sua a título de alerta: depois de sofrer vários abortos espontâneos, um dia ela estava no Starbucks quando seu médico ligou para dizer que ela não poderia levar a gravidez adiante. De pé no balcão, ela caiu no choro, daqueles de soluçar. Por acaso uma paciente sua acabara de entrar, viu a terapeuta chorando histericamente, deu meia-volta, cancelou a próxima consulta e nunca mais voltou.

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“Você não vai continuar escrevendo agora que é terapeuta, né?”, disse em seguida, mais uma afirmação que uma pergunta.

Ela sabia que, antes de voltar a estudar, eu era escritora: já tinha escrito em livros, revistas e jornais sobre tópicos pessoais como minha infância, minha vida romântica, ter um filho sozinha e maternidade. Talvez ela achasse que, vamos dizer, uma mulher solteira de trinta e muitos anos que quisesse ser mãe, mas jamais o faria sozinha, não procuraria meus serviços profissionais ou talvez não me revelasse seus verdadeiros sentimentos com medo de me ofender.

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Entendi sua preocupação. A relação terapêutica existe em determinado contexto; é o paciente que compartilha sua vida conosco, e não o contrário. Mas, mesmo que eu parasse de escrever, tudo que já fiz até hoje está aí, disponível, basta apenas um clique do mouse. Então me preocupei: se os pacientes lessem a respeito da minha vida, será que ficariam mais relutantes em me ver? Será que sairiam correndo como fez a paciente da minha colega no Starbucks?

O terapeuta lida com os desafios do dia a dia como qualquer outra pessoa

O terapeuta, é claro, lida com os desafios do dia a dia como qualquer outra pessoa. De fato, essa familiaridade é a base da relação que criamos com os estranhos que nos confiam suas histórias e segredos mais íntimos. Nosso treinamento nos ensina teorias, técnicas e nos fornece ferramentas, mas latente sob nossa experiência está o fato de sabermos muito bem como é difícil ser gente. Isso significa que todo dia vamos para o consultório como nós mesmos – com nossas próprias vulnerabilidades, desejos, inseguranças, experiências e histórias. De todas as minhas credenciais como terapeuta, a mais significativa é ser membro da raça humana. Sem essa característica, eu não conseguiria ajudar ninguém.

Já revelar esse traço é outra história.

A maioria dos profissionais hoje em dia usa alguma forma do que é conhecido como autorrevelação em seu trabalho, seja compartilhando algumas das próprias reações durante a sessão ou confessando que assiste à série a que o paciente vive se referindo. É muito melhor você admitir que vê The Bachelor do que fingir ignorância e, sem querer, soltar o nome de Colton Underwood quando o paciente ainda nem o mencionou.

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O que compartilhar e até que ponto é uma questão delicada. Uma terapeuta que conheço revelou a uma paciente cujo filho tinha síndrome de Tourette que seu filho sofria do mesmo mal, e isso aprofundou a relação das duas. Outro colega tratou um homem cujo pai tinha tirado a própria vida, mas nunca lhe contou que o próprio pai cometera suicídio também. Em cada situação há um cálculo a fazer, um teste subjetivo que fazemos para avaliar o valor da revelação: até que ponto é útil ao paciente ter essa informação?

Fora do consultório, porém, quais são as regras? Aqui vão exemplos de coisas que você, terapeuta, deve procurar não fazer em público: chorar com uma amiga no restaurante ou dizer “Eu sei, mãe!”, ao telefone, em tom petulante, na fila do supermercado, com um paciente por perto. Se for uma psicóloga infantil respeitada, como uma colega minha, não vai querer ficar parada na padaria quando seu filho de quatro tem um surto porque não ganhou outro biscoito, e ainda solta um “Você é a pior mãe do mundo!”, enquanto sua paciente de seis anos e a mãe a observam, estarrecidas.

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A história da reação da paciente da minha colega ao vê-la chorando no Starbucks me assombra até hoje, ou pelo menos a lição de moral que encerra: quando o paciente vê nossa humanidade, ele se afasta.

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Apesar disso, muitos também se mostram curiosos, inclusive eu. Uma vez joguei o nome do meu terapeuta no Google e descobri que seu pai morrera jovem, vítima de um enfarte. Depois disso, comecei a me policiar nas sessões, sem saber se falar sobre a forte relação que tinha com meu pai, já bem idoso, seria dolorosa para ele, tomando o cuidado de não me prolongar demais com alguma passagem especialmente comovente. Quando finalmente admiti o que tinha feito, descobri que minhas suposições estavam erradas; o que eu lera nem de perto revelava sua experiência como o relato em primeira mão conseguiu.

Sei que meus pacientes também colocam meu nome no Google – e nem sempre porque me contam, mas porque sem querer e inevitavelmente deixam escapar. Um exemplo: “Bom, você sabe como os meninos no ensino médio são”, embora eu nunca tenha mencionado meu filho e/ou sua idade; ou acrescentar um “Sem querer ofender”, depois de fazer um comentário negativo a respeito do grêmio universitário feminino ao qual eu pertencia e sobre o qual já escrevi.

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É por isso que o terapeuta não vai ao Google pesquisar a vida dos pacientes; queremos saber dela, sim, mas somente se for narrada cara a cara. Não nos interessamos apenas pelas informações, mas também pelo processo de compartilhá-las: o que a pessoa revela, o que omite, a que altura prefere compartilhar algo que parece uma dica valiosa – como quando a paciente que parece ser bem casada um dia diz: “Então, tem um cara no trabalho que estou paquerando há meses.”

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Não há uma pessoa que eu conheça – com exceção talvez das muito narcisistas – que queira falar com um terapeuta sem ter uma vida interna profunda, protegida por uma parede de tijolos. Quando minha colega perdeu o bebê, teve a reação que qualquer uma de nós teria, e isso é uma coisa boa. Se eu fosse sua paciente, haveria de querer que agisse da mesma forma na minha sessão? Claro que não, mas, se eu a tivesse visto no Starbucks naquele dia, teria me sentido ainda mais segura com ela e confiaria nela mais ainda, sabendo que entenderia a mim e a fonte da minha angústia.

Só espero que meus pacientes também façam o mesmo.

Lori Gottlieb é psicoterapeuta e autora do livro ainda inédito “Maybe You Should Talk to Someone”, do qual este artigo foi adaptado.
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