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Desculpe desapontar muitas pessoas que estão se consolando ao pensar num “novo normal” pós-pandemia. Mas quero crer que não existirá um novo normal, muito menos que as coisas voltarão a um “normal”. Não, não sou um pessimista, derrotista ou fatalista. Apenas não consigo acreditar em termos e expressões que surgem temporalmente quase que como dogmas de libertação da nossa realidade.
Quando evocamos um “novo normal”, gostaria primeiramente de saber qual a normalidade de que estamos falando? Estamos falando daquele mundo caótico, em que esquecemos que somos seres humanos, em que achávamos impossível parar um minuto sequer para repensar nosso modo de vida? Um mundo globalizado que, para alguns poucos, somente produzia riquezas exorbitantes, enquanto que para outros tantos produzia uma pobreza exorbitante. Um mundo degradado social e ambientalmente em nome de um progresso tecnológico que responderia a qualquer problema com uma simples palavra: inovação. Esse é o normal que nos habituamos?
Então como seria esse tal de “novo normal”? Nada mais do que um rápido retorno ao passado, ou um repensar na humanidade? Mas para onde nos levaria? Eu respondo que para mais do mesmo quase que com certeza... sabe por quê? Porque ele não existe. O que existe, sempre existiu e existirá é o amanhã!
Sim, estamos nos esquecendo que somos seres temporais. Porém essa realidade não nos pode aprisionar, como entendiam Nietzsche ou Heidegger que defendiam que o horizonte temporal da existência humana era impenetrável. Entendo que a temporalidade deve libertar e nos levar adiante. Retomemos a inspiração clássica que nos demonstra que só existe tempo onde existe matéria e, portanto, há exclusão de simultaneidade, o que quer dizer que o temporal e o atemporal convivem juntos no homem – não se opõem, mas se complementam. Deste modo o homem torna-se feliz na medida em que supera o tempo mediante a esperança, a fantasia e o amor.
O ritmo cíclico do tempo nos apresenta uma vida cotidiana e mediante sua reiteração, simula uma fantasia de “normalidade” e eternidade. Afinal, aquilo que fazemos a cada dia parece que podemos fazê-lo todos os dias e para sempre. Mas não somos donos do transcorrer do tempo, apesar de nos acostumarmos a pensar que a tecnologia nos trouxe a velocidade e com ela, a produtividade estava assegurada. Perceba que estamos ansiosos pelo novo normal para recuperarmos o “tempo perdido”, mas esse “ganhar tempo” nos remete ao “velho normal” que nos escravizou pela cultura da sociedade da pressa.
O amanhã é o lugar em direção ao qual nos dirigimos com esperança de crescer, de melhorar, de sermos felizes. Isso sim nós podemos construir! Precisamos redescobrir a lentidão, viver com serenidade, hoje e amanhã, sem sobressaltos, sem a necessidade de nos prendermos a horários, resultados ou um planejamento que não nos leva a lugar nenhum. A certeza de caminharmos para o amanhã nos assegura a maturidade para contemplarmos a vida, pois essa contemplação deve supor um enriquecimento pessoal, uma expressão de sua interioridade. Somente quem abandona seus interesses mesquinhos é capaz de contemplar. Num mundo que perdeu a paciência é preciso reaprender a esperar.
Convido todos a esquecerem esse angustiante “novo normal” para transcendermos rumo ao amanhã. Sim, o não presente, a realidade que está mais para adiante de nossos olhos, do outro lado do horizonte e que depende de nossas atitudes presentes. Abrir-nos para algo mais que o suscetível deste ou daquele normal, pois a verdadeira alegria que acontece aqui e agora aparentemente, na realidade acontece mais para além do tempo!
Pensemos o mundo como nossa casa comum e seus habitantes como nossos irmãos, cuidemos de todos para que não precisemos de milagres ou de milagreiros. Mudemos hoje, para termos um amanhã realmente diferente, sem promessas, mas com realizações.
Glauco Requião, advogado, consultor em sustentabilidade e criador do Portal Postura Sustentável.