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“Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não me salvo a mim.” (Ortega y Gasset)
A todo momento, vemos ofertas de vendas comerciais de produtos e serviços em dez pagamentos mensais sem juros, de viagens de avião a compras de simples produtos eletrônicos. O “sem juros” faz parte da estratégia comercial popular e passa despercebido o malefício que está embutido nessa embromação. O presente artigo não tem qualquer intenção de ser uma cruzada contra o financiamento, instrumento fundamental do mercado, mas sim uma crítica contra o seu uso distorcido e afrontoso, tornando-se uma terrível praga que suga o comércio popular, e que agora pode ser combatida com as inovações da recente Lei 14.181/2021.
Em uma economia com inflação mensal contínua (e elevada) e sujeita a taxas de juros também elevadas (na comparação com países desenvolvidos), como a nossa, é impossível que haja pagamento do preço em dez (ou mais) vezes “sem juros”. Por óbvio que os juros estão embutidos no preço, e essa informação é sonegada do consumidor. Em alguns casos a “mentirinha” é desmascarada logo a seguir, na própria oferta, com eventual desconto de 5% a 10% para pagamento com boleto (pagamento à vista, sem passar pelo financiamento via cartão de crédito ou crediário).
A situação do consumidor já foi muito pior, pois a esdrúxula redação antiga do Código do Consumidor proibia a diferenciação de preço à vista com preço a prazo, pago com cartão de crédito ou crédito direto. A Lei 13.455/2017 autorizou o comerciante/fornecedor a oferecer preço diferenciado para pagamento em dinheiro ou cartão de crédito/débito. Mesmo sendo um avanço, a lei foi tímida, pois deixou nas mãos do fornecedor/comerciante a faculdade de oferecer preço diferenciado, sendo ainda recorrente a oferta única de preço parcelado “sem juros”, com o intuito capicioso de induzir o consumidor a comprar nessa modalidade.
Mas o que há de mau no “sem juros”? Primeiro, a falta de verdade e honestidade, pois certamente estão embutidos no preço os juros do financiamento. Segundo, ele induz uma elevada gama de consumidores que não necessitam de financiamento para aquele valor a fazer uso da facilidade, pagando juros embutidos no preço de 10% a 15% ao ano, enquanto tem capital investido (em poupança popular, por exemplo) rendendo muito menos. A negociata é tão boa que as empresas de cartão de crédito oferecem “bônus” em forma de pontos, incentivando o uso irracional do crédito via cartão, na esteira enganosa do “sem juros”.
O consumidor, levado pela propaganda enganosa do “sem juros”, distraído pelos pontos na compra a crédito, mesmo não necessitando do crédito, chega a pensar que está fazendo um bom negócio. Aderindo ao pacote ilusório, entretanto, passa a validar esse tipo comercial, aceitando o sobrepreço financeiro (que se espraia por toda a economia), fortalecendo o atravessador financeiro e colocando o fornecedor em uma situação de dependência contínua de crédito para antecipar seus recebíveis (o preço), com pagamento de elevadas taxas, uma corrente maldosa.
Assim, boa parte do movimento do mercado passa desnecessariamente pelo sistema financeiro, pagando taxas dos cartões e juros, alimentando atravessadores, pagando uma espécie de pedágio para poderoso segmento parasitário, agravando ainda mais o monstruoso “custo Brasil”. No mundo mais civilizado, o preço é ofertado à vista, destacando-se claramente acréscimos decorrentes de taxas e juros em caso de prazo, crédito ou financiamento. Em nosso país, já sofrendo de inflação e juros altos, estratagemas cruéis incentivam pagamento de juros desnecessariamente.
Com o respeito e delicadeza que o tema exige, tome-se como exemplo o milionário segmento de passagens aéreas, no qual todas as ofertas, com raras exceções, já vêm em pacote de crédito “sem juros” e são assim aceitas, em grande parte por consumidores que poderiam pagar à vista com preço muito menor. É lícito estimar o quanto de milhões as empresas vendedoras pagam às financeiras para antecipar os seus créditos. Nesse segmento é palpável a intenção e objetivos dos ilusórios pontos nas compras com cartão. A armadilha se espalha em todos os segmentos do mercado nacional, uma afronta contra a economia popular.
A situação do consumidor já foi muito pior, pois a esdrúxula redação antiga do Código do Consumidor proibia a diferenciação de preço à vista com preço a prazo.
A recente Lei 14.181/2021, aprimorando o Código do Consumidor em seu artigo 54-B, determina que, no fornecimento de crédito ou venda a prazo, o fornecedor ou intermediário deve informar, prévia e adequadamente, o custo efetivo total da operação, com descrição dos elementos que o compõem e taxa efetiva mensal de juros. A nova norma certamente alcança as enganadoras venda a prazo “sem juros”, pois devem ser informados na oferta os elementos que compõem o preço, especialmente taxas e juros repassados ao financiador, permitindo que o consumidor possa melhor avaliar e decidir a compra.
A nova lei acima resumida é mais uma medida de proteção ao consumidor e certamente pode ajudar no combate dessas tortuosas ofertas “sem juros”, e assim melhorar a eficiência da nossa economia. O PIX, nova modalidade de pagamento à vista, ofertado pelo Banco Central, via celular, sem intervenção de financiadores de plantão, também é outro bom remédio para a distorção do “sem juros”, permitindo preço menor e concorrência com as poderosas redes de cartões e seus bônus chamarizes.
O mercado precisa implantar efetivamente o costume de fazer suas as ofertas sempre no preço à vista, com opção de prazo ou financiamento esclarecida com as respectivas taxas de juros e acréscimos, valorizando a transparência e decência comercial. Um modelo legal de oferta nesse sentido, a partir do preço à vista, além de trilhar pelo caminho da honestidade e lealdade, vai colaborar vigorosamente com a educação financeira dos consumidores, permitindo conhecer e atentar para acréscimos e juros, muitas vezes desnecessários.
A nossa cultura, especialmente a comercial, tem aberturas para soluções mágicas, quando não contrárias ao princípio da verdade e honestidade. Esses comportamentos causam distorção e permitem ganho fácil momentaneamente para poucos privilegiados, mas sem justa causa e socialmente deslegitimado, somando aos milhares de transações comerciais diárias do mercado nacional uma monstruosa perda de eficiência econômica, ajudando a alimentar o atraso que faz o país continuar sempre na rabeira da economia mundial.
Comerciantes, fornecedores de serviços, associações comerciais, sindicados, Procons, Promotorias do Consumidor e consumidores conscientes têm obrigação histórica de atuar para mudar essas distorções maléficas. Operadores do direito, doutrinadores e empreendedores compromissados devem cerrar críticas contra essas desconformidades vergonhosas, cobrando aplicação de legislação corretiva e comportamento conforme do mercado, para fortalecimento do comércio honesto, aprimoramento das relações sociais e o bem das futuras gerações.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da UEM.