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O Judiciário brasileiro tem sido o desaguadouro de uma miríade de ações para implementar o direito à saúde, nomeadamente em virtude de novas tecnologias que ainda não foram incorporadas no Sistema Único de Saúde (SUS). A judicialização da saúde foi banalizada, quando o tratamento ou o medicamento não é provido no sistema de saúde se recorre ao juiz. Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), o número de ações judiciais na área da saúde aumentou de 21 mil por mês em 2020, para 61 mil em 2024, totalizando 600 mil ações anuais. O Ministério da Saúde gastou em 2023 mais de R$1,4 bilhão para o fornecimento de medicamentos não incorporados pelo SUS.
Com a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), o Ministério da Saúde (MS) passou a contar com assessoramento técnico sobre a incorporação de tecnologias no SUS. No entanto, essas demandas judiciais aumentaram a ponto de comprometerem o orçamento público. Quando o assunto é a saúde cada demanda atendida, sem a previsão orçamentária, pode acarretar prejuízos aos programas de saúde pública inviabilizando o atendimento de milhares de brasileiros no SUS. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, alertou para necessidade de reduzir os litígios na saúde.
Somente com o fortalecimento da instância administrativa de avaliação de tecnologia em saúde (ATS), conferindo-se prioridade a suas decisões que avançaremos, com equidade, na implementação do direito à saúde
O caminho para ampliar-se o acesso a novas tecnologias, seguramente, não é o Judiciário, não será com a caneta perdulária do doutor de branco (médico) ou a caneta generosa do doutor de preto (juiz) que resolveremos as demandas por saúde no Brasil. Somente com o fortalecimento da instância administrativa de avaliação de tecnologia em saúde (ATS), conferindo-se prioridade a suas decisões que avançaremos, com equidade, na implementação do direito à saúde. A criação de uma nova agência para ATS tem sido defendida para agilizar as incorporações de novas tecnologias e reduzindo elevado grau de litígios judiciais.
Como ministro da Saúde atuei para fortalecer a Conitec, tornando-o reconhecida pela sociedade brasileira, a legislação que disciplina a matéria foi aprimorada. Foi requerido em lei (Lei 14.313/2022) que o MS definisse as metodologias empregadas na ATS, inclusive os indicadores e parâmetros de custo e efetividade usados no país. Essa medida, já adotada por entidades responsáveis pela ATS de outros países como a Austrália, o Canadá, o Chile e o Reino Unido, contribui para ampliar a transparência das decisões administrativas.
O Legislativo, igualmente, tem sido alvo da pressão para incorporar novas tecnologias, sem a necessária avaliação técnica, cite-se o Projeto de Lei 6.630/2019, que obrigava os planos de saúde a cobrirem, em até 48 (quarenta e oito) horas após o registro na Anvisa, os gastos com medicamentos de uso domiciliar e oral contra o câncer. Esse projeto foi vetado para preservar a prerrogativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A Lei 14.307/2022, decorrente da Medida Provisória 1.067/2021, instituiu a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar (Rol da ANS), semelhante a Conitec. Também estabeleceu um elo entre as incorporações de tecnologias no SUS e na saúde suplementar, ao determinar que as tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Conitec fossem incluídas no Rol da ANS no prazo de até 60 (sessenta) dias.
Houve aumento das incorporações de tecnologias no SUS, boa parte em face de demandas internas feitas pelo MS, em destaque a incorporação do onasemnogeno abeparvoveque (Zolgensma) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal, tido à época como o medicamento mais caro do mundo, mediante inédito acordo de acesso gerenciado, onde há o compartilhamento de risco com a indústria, também incluído no Rol da ANS em face da Lei 14.307/2022.
A ideia de criar uma agência de ATS não é nova, a sigla seria simples, ANATS, mas a implementação complexa. Será que essa “nova” estrutura traria vantagens sobre a Conitec? As agências são entidades que integram a administração pública indireta, submetidas a regime autárquico especial, com autonomia administrativa e financeira, sem subordinação hierárquica ao Executivo. A nova agência, portanto,seria autônoma para deliberar sobre incorporação de tecnologias, incluindo os recursos para o seu financiamento, que é parte do orçamento do MS, atribuição que é exclusiva da administração pública direta.
A ANATS não é solução mágica, um coelho que se tira da cartola, assemelha-se mais a um jabuti na administração pública brasileira. O cenário atual das agências regulatórias no Brasil não é alentador. Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, disse que a agência está em vias de colapsar por falta de funcionários. Não é de hoje que assistimos a captura das agências regulatórias por parte do setor regulado, resultando em loteamento político desses órgãos, o que não é exclusividade do Brasil.
O melhor seria fortalecer a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde, ampliando sua expertise nas diversas áreas da ciência. Atualmente, poucos núcleos atuam em todas as fases do processo de ATS, principalmente nas avaliações econômicas mais complexas. A qualificação da rede pluralizaria o debate científico e promoveria mais qualidade a discricionariedade técnica da administração pública.
O principal obstáculo à incorporação de tecnologia no sistema de saúde persiste sendo o seu impacto orçamentário. A velha teoria do cobertor curto, é impossível cobrir a cabeça e os pés ao mesmo tempo quando o cobertor não é longo o suficiente, que ganha importância diante do nosso maior desafio: ampliar o acesso dos brasileiros aos programas públicos já disponíveis. A mudança no entendimento recente do STF sobre a matéria, realçando o papel da Conitec, é oportuna, e deve fortalecer o papel na ATS no Brasil.
Marcelo Queiroga é médico cardiologista e ex-ministro da Saúde.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



