É rotineiro ver os comentaristas de economia convidados pelas bancadas dos jornais televisivos dando exemplos comparando orçamentos nacionais com o orçamento de uma família. Válido apenas pela didática, esse tipo de exercício geralmente conduz a uma conclusão do tipo “gastou acima do que ganhou” e assim explica-se, segundo eles, a situação da Grécia, por exemplo. A realidade é um tanto quanto mais complexa, seja a grega ou a brasileira: como dimensionar, no exemplo de um orçamento familiar, que quase metade dele seja destinada ao pagamento de uma dívida cuja origem e legitimidade são no mínimo questionáveis? Como aceitarmos tão passivamente que quase metade do orçamento do governo seja consumida pelos juros e amortizações de uma dívida não auditada?

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O movimento Auditoria Cidadã da Dívida, do qual participa Maria Lúcia Fattorelli, brasileira que já participou da auditoria da dívida equatoriana e também foi convidada para compor a comissão responsável pela auditoria grega, indica que o pagamento da dívida consumiu em 2014 o valor de R$ 978 bilhões, um valor mais de dez vezes superior ao valor gasto com educação ou saúde, por exemplo. Apenas para comparação: diversos estudos sobre o custo da corrupção para o Brasil apontam que ele gira em torno de R$ 80 bilhões ao ano.

Não responder as perguntas é continuar condenando a maior parte da população ao pagamento de uma dívida que ela não contraiu

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Como explicar que R$ 978 bilhões nem de longe tenham recebido na campanha política do último ano atenção comparável à dada ao programa Bolsa Família, ao qual são destinados cerca de R$ 25 bilhões anualmente? Como explicar que se fale tanto em investimento nos setores produtivos, mas haja um profundo silêncio sobre quase R$ 1 trilhão sendo destinado ao pagamento de uma dívida que é em grande parte ilegítima? O silêncio dos candidatos dos grandes partidos na última campanha eleitoral, e também da grande mídia, revela o quanto estão a serviço do rentismo, beijam a mão que assina o cheque e fazem o pagamento dos juros da dívida ocorrer de maneira silenciosa, embora ele seja gritante quando observado o orçamento federal. Não à toa que na última campanha a dívida pública esteve em pauta, entre os candidatos dos grandes partidos, apenas para que fossem trocadas acusações sobre quem aumentou a dívida externa ou quem aumentou a dívida interna. Talvez nesse momento o endereço do credor interesse menos que a legitimidade da cobrança.

A CPI da Dívida – proposta pelo deputado federal Ivan Valente, do PSol, e realizada entre 2009 e 2010 – reconheceu que o significativo crescimento da dívida pública brasileira não se deu como contrapartida de investimentos aqui realizados, mas sim da mera aplicação de juros sobre juros. Foram apontadas ainda a ilegalidade da emissão de títulos da dívida externa por meio de decretos secretos durante a ditadura militar e diversos momentos e modos de contabilizarmos uma dívida correspondente apenas a juros e não à entrada de bens e serviços no país. Todo o trabalho da CPI parece ter sido ignorado – como a própria Constituição, que prevê a realização da auditoria.

No Equador, o resultado do trabalho da comissão criada para a realização da auditoria da dívida permitiu a redução de 70% da dívida externa do país – e, claro, menos dinheiro sendo destinado a pagamento de uma dívida ilegítima significa a possibilidade de aumentar o dinheiro destinado a gastos sociais, como saúde e educação. Grande parte da dívida brasileira foi cancelada na década de 30, quando Getúlio Vargas determinou que fosse realizada uma auditoria. Em meio ao fetiche pelo superávit primário, ao aumento de juros e aos cortes impostos pela política econômica conduzida pela equipe do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, o Chicago boy, o governo admitiu dias atrás que a dívida pode chegar a R$ 2,8 trilhões ao fim deste ano. Qual é o custo político e social de uma dívida pública que impõe a retirada de muitos para o benefício de tão poucos? Há muitas perguntas e não buscar respondê-las é continuar condenando a maior parte da população ao pagamento de uma dívida que ela não contraiu. A auditoria da dívida é um passo mais que necessário e não dá-lo pode significar nos eternizarmos como uma colônia de banqueiros.

Raul Lucas Tanigut Brisola Maciel é graduado em Ciências Econômicas pela UFPR.