O STF reabriu os debates em torno da possibilidade da prática de aborto na hipótese de ser constatada, no útero materno, a anencefalia do ser em formação, o que torna relevante tecer alguns comentários sobre a hipótese.
É importante observar que o Código Penal brasileiro estabelece que é crime "provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque", excluindo a criminalização em duas hipóteses, a do aborto necessário ou terapêutico (quando não há outro meio para salvar a vida da gestante) e a do aborto emocional (quando a gravidez resulta de estupro).
Quando da elaboração do CP, na década de 1940, não era possível prever que o avanço científico permitiria detectar anomalias do feto durante a gestação, fato suficiente a justificar que a lei não tenha manifestado preocupação com as hipóteses que podem ser debatidas quando se imaginam os avançados exames que permitem, à ciência médica, detectar, ainda no útero, variados problemas que possam vir a manifestar-se no feto e suas repercussões após o nascimento.
Esse é o ponto: a inexistência de autorização legal para o aborto, na hipótese de anencefalia, está a impedir que ele se realize? É de observar que a autorização legal na hipótese se mostra absolutamente desnecessária. Mais: seria tautológico se a lei a contivesse pelo simples fato de que o aborto do feto, na hipótese de anencefalia, não preenche o tipo penal geral que criminaliza a prática abortiva. Em outras palavras, abortar quando se constata a anencefalia sequer chega a ser proibido, portanto, não precisa de lei autorizando.
As exceções da legislação aborto terapêutico e aborto emocional existem porque se está diante de conduta que inicialmente preenche o tipo incriminador, hipótese distinta de quando o feto padece da anomalia da anencefalia.
Todo o fundamento da lei penal está associado a um bem jurídico concretamente protegido. Quando o feto apresenta a má formação caracterizadora da anencefalia não existe a presença do bem jurídico tutelado pelo crime de aborto, qual seja a vida.
Na lei de transplante de órgãos (Lei nº 9.434/97), categoricamente está estabelecida a autorização para o transplante de órgãos vinculada à morte encefálica; assim, caso não se considere a morte encefálica como a morte do ser humano, ter-se-ia de concluir que no Brasil tem-se feito a retirada de órgãos de pessoas ainda vivas, o que é inaceitável e representaria uma absoluta incongruência do sistema jurídico.
Após a morte encefálica não há mais possibilidade de existência autônoma do ser, não apresentando o mesmo condições de retorno a um quadro de existência normal, fato que faz com que seja precisa a caracterização desse momento como o da morte.
No tema específico do feto com anencefalia, não há vida; trata-se de um ser juridicamente morto, o qual a gestante é obrigada a carregar por nove meses.
Com isso, qual a tutela exercitada se na anencefalia não há vida a proteger? A verdade é que não se tutela nada. Não existe bem jurídico protegido quando se impede a realização do aborto a partir das constatações de que o feto padece da anomalia da anencefalia.
Não há qualquer crime em realizar a retirada do feto do útero materno quando verificada a anencefalia, de sorte que havendo a constatação médica do quadro de anencefalia não se tem tipicidade da prática da retirada do feto, inexistindo qualquer atuação do ordenamento jurídico a impor que a pessoa não possa praticar o aborto ou mesmo que necessite de autorização judicial para fazê-lo.
A regra é a liberdade. O ser humano somente está impedido de fazer algo quando a lei proibir, o que não se dá na hipótese em análise, em que inexiste qualquer proibição, sendo desnecessária, assim, também qualquer autorização. Frise-se, não precisa a lei autorizar o que não está proibido.
O debate em torno da realização do aborto, na hipótese do feto padecer de anencefalia, tem sido, em grande parte, dominado por valores morais e mesmo religiosos, não pela racional análise do papel do Estado, nas hipóteses em que pode intervir e limitar a liberdade individual, bem como da interpretação contemporânea dos comandos normativos penais.
A mãe não está obrigada a fazer o aborto ao ser constatada a anencefalia do feto que carrega. Seus valores emocionais, morais e religiosos podem conduzi-la à conclusão de que deve percorrer todo o período de gestação e dar à luz a um ser, mesmo sabedora de que este não viverá; o que não pode, porém, é permitir que os sentimentos, valores morais e religiosos de uma parcela da sociedade imponham a proibição para aquelas pessoas que não desejam suportar o sofrimento imenso de nove meses de gestação para o anúncio derradeiro de que o filho veio ao mundo morto.
Como, em magníficas palavras, referiu a escritora iraniana Azar Nafisi, ao tratar do véu que cobre a cabeça das mulheres no islamismo: "A questão não é usar ou não o véu. É se a mulher tem o direito de escolha."
A questão não é se deve ou não a mãe abortar, mas garantir a ela o direito de escolher. O que não se admite é o que o Estado, carregado de religiosidade, intervenha em tal escolha, impedindo a mulher de praticar um ato que não é, e nem poderia ser, proibido.
Há muito se apregoa a separação da religião e do Estado. O tema do aborto em hipótese de anencefalia tem feito unir o que deve ficar separado. Vale lembrar as palavras imortais de um excepcional pregador que, há cerca de 2 mil anos, defendia a separação dos assuntos religiosos daqueles atinentes ao Estado: "A César o que é de César e a Deus o que é de Deus."
Adel El Tasse é advogado, procurador federal e professor de Direito Penal. Integra a Coordenadoria do Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais.adel@eltasse.com.br
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