Fruto da inação de nossos governantes e sob o silêncio obsequioso de intelectuais, entidades de classe e de boa parte da grande mídia, o empobrecimento da população brasileira avança à velocidade estarrecedora. Hoje, os rendimentos do 1% de cidadãos mais ricos do país correspondem a 34,8 vezes a renda dos 50% dos brasileiros mais pobres, discrepância que, por si só, comprova o fracasso das políticas de distribuição de renda e explicam muito sobre o abismo social que delineia as desigualdades tão marcantes na nação.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, e do Instituto Millenium, de 2023, mostram que o estrato do 1% mais ricos do país tinham em 2018 (portanto antes da pandemia da Covid-19) renda média de R$ 27.744,00, enquanto os 50% mais pobres receberam R$ 820,00 por mês. Apenas dois anos depois, em 2021, a renda dos mais ricos era de R$ 15.800,00/mês e, a dos mais pobres, R$464,00/mês. Para os abastados, a queda na renda no período foi de 43,05% e a dos brasileiros mais pobres foi ainda um pouco maior: 43,41%.
Se esses valores forem calculados em moeda norte-americana, a queda é bem maior. A renda dos mais ricos caiu 61,95%, de US$ 7.161,11/mês para US$ 2.724,60/mês, tomando-se por base a cotação do dólar em 31 de dezembro dos anos referência. Para os mais pobres, a queda foi de 62,20%, de US$ 211,66/mês para US$ 80,01/mês.
O país patina e segue sofrendo de três grandes males: a falta de prioridade na educação, a falta de ética na vida pública e a ausência de um plano de metas, com ações delineadas e rumo bem definido.
Obviamente, a queda na renda tem impacto muito maior na vida dos mais pobres do que no cotidiano dos mais ricos. Hoje, a enorme maioria (de 93 a 94%) da população brasileira com carteira assinada e trabalhadores autônomos tem rendimento mensal bruto inferior a R$ 4.700,00. Para esses, a renda líquida é pouco superior a R$ 3.920,00 por mês.
É triste também a realidade nacional quando olhamos para o rendimento domiciliar per capita – correspondente à renda total da família dividida pelo número de moradores na residência. Em 2022, a média brasileira era de apenas R$1.625,00. Nesse quesito, as maiores rendas estão em três unidades da Federação: Distrito Federal (R$ 2.913,00/mês), São Paulo (R$ 2.148,00) e Rio Grande do Sul (R$ 2.087,00). Os piores resultados estão nas regiões Norte e Nordeste: Amazonas (R$ 965,00), Alagoas (R$ 935,00) e Maranhão (R$ 814,00).
Dados relativos a 2021 publicados este ano pelo Instituto Millenium tornam ainda mais dramático o quadro das desigualdades. Revela que em apenas três estados o grupo do 1% mais ricos da nação tem renda superior à da média nacional, de R$ 15.800/mês: Distrito Federal e Rio de Janeiro, ambos com R$ 19.900,00, e São Paulo, com R$ 16.400,00. Rio Grande do Sul (R$ 12.000,00) e Espírito Santo (R$ 11.600,00) vêm em seguida, mas ficam abaixo da média nacional. Os três estados com pior colocação nesse quesito são Rondônia (R$ 8.100,00), Paraíba (R$ 8.200,00) e Roraima (R$ 8.300). Muitos dos estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentam média inferior à metade da média nacional.
Discursos e promessas que jamais serão cumpridas continuam sendo a tônica nacional.
Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), publicado em fevereiro de 2023, sobre o coeficiente de Gini no Brasil retrata a piora nesse indicador que mensura a distribuição de renda em um território (quanto mais próximo de zero, menor é a desigualdade social). Em 2017, o índice Gini brasileiro foi de 0,501, no ano seguinte (2018) subiu para 0,509 e, em 2020, foi de 0,543. Ou seja, a desigualdade social segue crescendo.
A enorme concentração de poder e renda explica muito sobre a perpetuação das desigualdades sociais no Brasil. Um quadro agravado graças às poucas oportunidades de trabalho, péssima administração dos recursos públicos, baixa remuneração dos trabalhadores, alta tributação sobre o consumo e baixíssima escolaridade de grande parte dos brasileiros, dentre outros fatores não menos graves. Não é de se estranhar, portanto, que a população enfrente pobreza e miséria, condições precárias de moradia, aumento dos índices de violência e da falta de segurança pública, além da má qualidade dos serviços públicos de educação e saúde.
Os governos ainda não aceitaram a verdade de que o equilíbrio fiscal e o crescimento socioeconômico não virão somente pela via única de aumento dos tributos.
A máxima segundo a qual “sem educação não há salvação” vem sendo sistematicamente ignorada nos últimos 20 ou 25 anos pelos governos, sempre eficientes nos discursos, quase nunca assertivos nas ações práticas. A implantação do ensino em tempo integral ainda patina, apesar de reconhecida como um grande passo para a melhoria da educação. Hoje, o Brasil tem apenas 11,40% dos alunos matriculados em escolas de tempo integral no ensino fundamental I. A evolução é muito lenta: em 2018 eram 11% e em 2022, 11,40%. Nesse ritmo, o Brasil levará 40 anos para atingir a meta de 50% dos alunos nesse tipo de ensino. Os números são também nada encorajadores no ensino fundamental II. São apenas 13,7% em escolas de tempo integral. Em 2018, eram 10,5%. Nesse ritmo, a meta só será alcançada em mais de 13 anos. O maior passo foi dado no ensino médio, com melhora significativa e encorajadora. Eram 10,5% dos alunos matriculados em 2018 e, em 2022, já eram 20,40%. A manutenção desse ritmo assegurará o alcance da meta (50% dos alunos) em poucos anos.
É fundamental para o país a implantação do ensino em tempo integral em todos os níveis e em todo o território nacional. O modelo, já adotado em países desenvolvidos, é absolutamente recomendável. Com ela, a criança que passa o dia na escola fica socialmente protegida e dá tranquilidade às mães que precisam trabalhar fora para sustentar a casa ou auxiliar na renda familiar. O mais importante, no entanto, é que o aluno tem oportunidade de desenvolver suas habilidades e competências que lhe serão muito úteis, mais tarde, em sua vida profissional e no exercício da cidadania. Há ainda reflexos positivos na saúde e na busca exitosa de colocação no mercado de trabalho, com melhores remunerações e qualidade de vida.
A máxima segundo a qual “sem educação não há salvação” vem sendo sistematicamente ignorada nos últimos 20 ou 25 anos pelos governos.
O Brasil precisa olhar com mais cuidado o processo de alfabetização das crianças. Hoje, há deficiências graves nessa etapa. Com base em informações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), que acompanha o processo de alfabetização do 2º ano do ensino básico, a proporção de crianças com dificuldade para ler e escrever dobrou entre 2019 e 2021, saltando de 15,5% para 33,8%. Nesse quadro de horror contemporâneo, portanto, uma em cada três crianças não está sendo adequadamente alfabetizada.
Há outros indicadores que mostram o enorme fosso entre os discursos políticos e a realidade. Um deles é a avaliação internacional pela qual o Brasil teve uma das piores notas em estudos. Quatro em cada 10 alunos do 4º ano têm dificuldades para ler. Um percentual elevado de crianças está situação de vulnerabilidade social – fator, inclusive, de evasão escolar – e 70% dos valores disponibilizados para a educação via Fundeb estão comprometidos com folha de pagamentos. Com isso, sobra pouco para as outras necessidades inerentes ao ensino de qualidade, como laboratórios, bibliotecas etc.
Todos os governos que assumem, costumam conjugar cinco verbos em seus primeiros atos: exonerar, nomear, revogar, ampliar e culpar.
Questão essencial a ser enfrentada com urgência é a baixa remuneração dos professores, desestímulo à carreira, com consequência desastrosa na qualidade de ensino. As remunerações hoje variam de R$ 3.450,00 até R$ 8.151,00 (para quem possui doutorado) bem abaixo de outras profissões. Em São Paulo, o estado mais rico da Federação e com plano de carreira, a remuneração mensal dos professores varia de R$ 5.000,00 até R$ 13.000,00 (para os que possuem título de doutor). Para 89% dos professores paulistas, a remuneração dos professores paulistas, em 2021, ficou em R$ 5.000,00 mensais o que significa, na prática, que o piso igualou-se ao teto.
O quadro é agravado pela falta de plano de carreira na maioria dos estados ou mesmo o seu descumprindo onde ele existe. Faltam políticas públicas que incentivem a docência e tratem a educação com a seriedade que o tema merece. É recorrente a falta de concursos públicos e, por isso, quase metade (44,6%) dos professores trabalham amparados por contratos temporários. Os desafios postos são enormes. O Brasil ressente-se de mais investimentos na infraestrutura das escolas e, principalmente, de melhor formação e capacitação, além da reformulação do currículo escolar para torná-lo mais próximo das demandas modernas e das profissões do futuro.
O déficit público aumenta de forma irresponsável, ainda que de forma legal, por meio da aprovação de leis aprovadas pelo Congresso Nacional.
Para alcançar a meta de ter ao menos 50% dos alunos do ensino fundamental e médio em regime de tempo integral, o Brasil precisaria ampliar a capacidade física das escolas e arcar com os custos adicionais, notadamente com a contratação de mais professores. Talvez seja necessário dobrar os recursos financeiros hoje alocados nas escolas regulares. Entretanto, não se trata de custo, mas de investimento para mudar o patamar da educação nacional. Sem que haja uma política de Estado profunda e objetiva em relação à educação, continuarão existindo dois Brasis. Não se trata das desigualdades regionais, seriíssimas, mas de um Brasil de portadores de CPF que cumprem as leis, e de outro Brasil, uma nação dissociada da realidade e na qual governantes e políticos parecem acometidos de surdez coletiva e cegueira conveniente.
É esse segundo Brasil o maior obstáculo para a construção do primeiro, o sonhado, porque é dominado por quem está mais preocupado em manter – ou ampliar – os seus próprios poderes, à custa de mais despesas e maior endividamento público, hoje já ultrapassando R$ 7,5 trilhões e crescendo à ordem de mais de R$ 700 ou R$ 800 bilhões por ano.
O déficit público aumenta de forma irresponsável, ainda que de forma legal, por meio da aprovação de leis aprovadas pelo Congresso Nacional, possibilitando a flexibilização de gastos, controles e autorizações, agora sob a denominação de novo arcabouço fiscal. Nesse cenário, já está sinalizado aumento de gastos autorizados para 2024 de cerca de R$ 40 bilhões a R$ 80 bilhões sem a necessidade de receitas correspondentes, o que certamente significará uma herança de dificuldades para os futuros governos. Como se não bastasse, já se discute a aprovação de novas leis que descriminalizam qualquer prática do governante que venha a descumprir suas obrigações, tudo extensivo a estados e municípios, o que é ainda pior.
Discursos e promessas que jamais serão cumpridas continuam sendo a tônica nacional, como se fosse possível resolver todos os problemas do país com o novo marco fiscal e com a reforma tributária – verdadeiro eufemismo para aumento de tributos.
Ninguém assume publicamente que reforma tributária somente será positiva para a população se vier acompanhada de dispositivos que propiciem, de forma imediata e explicita, a redução drástica da tributação sobre o consumo, correção anual das tabelas do Imposto de Renda e das aposentadorias e pensões pagas pelo INSS (pela inflação acumulada nos 12 meses anteriores), e que a defasagem de mais de 147% no IR somente será reposta em até cinco anos, em parcelas anuais.
Os governos ainda não aceitaram a verdade de que o equilíbrio fiscal e o crescimento socioeconômico não virão somente pela via única de aumento dos tributos e sim – e principalmente – por meio da redução dos gastos públicos e efetivo combate a corrupção dos três entes federativos. Com isso, o país patina e segue sofrendo de três grandes males: a falta de prioridade na Educação, a falta de ética na vida pública e a ausência de um plano de metas, com ações delineadas e rumo bem definido. Todos os governos que assumem, costumam conjugar cinco verbos em seus primeiros atos: exonerar, nomear, revogar, ampliar e culpar. É muito pouco para um país com tantas necessidades, gargalos a serem eliminados e distorções a serem urgentemente corrigidas. Há muitas outras ações que precisam ser postas em prática.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.