Há muitos anos trabalho como promotor de Justiça, desde a época em que éramos chamados de “promotores públicos”. Naquele tempo, normalmente no Tribunal do Júri, era comum ouvirmos dos advogados que a Justiça processava apenas os três PPP. Com perdão da palavra, mas para quem não conhece a expressão, preciso registrá-la: diziam que só processávamos os pobres, os pretos e as putas. Em suma, a Justiça acionaria apenas as classes sociais mais desfavorecidas. Classe média e alta estavam fora do radar.
Ao longo da carreira, essa realidade foi mudando. Pude constatar que a classe média, muitas vezes, estava presente no banco dos réus. É verdade, difícil encontrar alguém da classe média sendo processado por roubo, furto ou mesmo tráfico de maconha ou cocaína. No entanto, ela aparece nos homicídios culposos, de trânsito; por vezes, nos dolosos, intencionais. Aparece no tráfico, sim, mas de ecstasy, LSD e companhia. Nos delitos patrimoniais, também, mas mais raramente e de forma diversa, sem violência, com astúcia.
As classes dominantes não conseguem controlar a magistratura, a polícia e o MP nos graus inferiores, mas tentam controlar as cúpulas
O tipo de infração penal praticada muda conforme a classe social e o nível socioeconômico da pessoa. Vi médicos no banco dos réus, advogados processados por apropriação do dinheiro do cliente, juiz e promotor processados por homicídios dolosos e até por corrupção.
A Justiça, há anos, não exclui mais a classe média. Esse privilégio parece ter acabado após a edição da Constituição Federal de 1988, gradativamente. Mas a Constituição Federal pedia mais: ela diz que todos são iguais perante a lei e criou alguns mecanismos para implantar essa igualdade. Um deles foi o novo perfil do Ministério Público, com autonomia e a ampliação das funções.
Nos dias atuais, chegamos à classe alta: ao topo da pirâmide socioeconômica. A Operação Lava Jato desvendou os mecanismos de perpetuação no poder utilizado pelas classes políticas e empresariais dominantes. A Justiça, finalmente, começa a ser republicana: igual para todos.
Mas nosso ranço monárquico é forte. As classes dominantes não conseguem controlar a magistratura, a polícia e o Ministério Público nos graus inferiores, mas tentam controlar as cúpulas. O sistema de nomeação de ministros para o STF é anacrônico; a escolha da chefia do Ministério Público pelo Poder Executivo ainda é um entrave para a instituição. Essas questões precisam evoluir para que a Justiça possa ser efetivamente igual para todos.
Neste momento, há uma tentativa de retrocesso com o novo projeto de lei de abuso de autoridade; em verdade, uma tentativa de enfraquecer a polícia, a magistratura e, especialmente, o Ministério Público.
Pelo projeto a ser votado no Senado, várias atividades usuais da polícia, do MP e da magistratura podem transformar-se em crimes: usar algemas em presos, processar alguém, exceder um prazo e por aí vai. É óbvio que isso só causará problema para juízes, promotores e policiais se o réu for gente importante. Aqueles que usam o ataque como técnica de defesa.
É óbvio que a legislação deve prever punições para todo e qualquer funcionário do Estado que exorbite, intencionalmente, suas funções, causando graves prejuízos a terceiros. Isso inclui os funcionários do sistema da Justiça, disso não há nenhuma dúvida. Mas, como todo ato importante, a legislação deve ser debatida com cuidado. Aprovações de afogadilho não são recomendáveis, especialmente quando seus objetivos não parecem os mais nobres.
Esperemos que os bons políticos – e eles existem – ajam com a prudência e a sabedoria necessárias para impedir retrocessos num assunto atualmente tão caro a toda a sociedade. A nós, cidadãos da República brasileira, cabe cobrar e fiscalizar a ação daqueles que elegemos para que a nação siga no rumo do desenvolvimento que tanto almejamos, e a justiça seja, de fato e de direito, igual para todos.
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